quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

 

LIVROS 5 ESTRELAS # XXII

O PAVÃO BRANCO

Bem pode o amigo leitor munir-se de uma lupa e qual Sherlock passar a olho fino este livro da primeira à última página, linha após linha, em busca do famigerado PAVÃO BRANCO: não o encontrará! Depois da detectivesca leitura ter-se-á deparado com muita bicheza, desde cães a gatos, galinhas a vacas, ratos a abibes, coelhos a mulas, borboletas a ovelhas, cisnes a cavalos e até pavões coloridos e por aí fora que quase parece uma descrição da arca do Noé, mas o albino pavão não passa aqui de uma alegoria simbólica de algo muito raro de encontrar neste mundo-cão cheio de falsas aparências: a pureza de carácter e a paradisíaca plenitude da felicidade!                                                                              

" - Oiça aquele maldito!  

 Mais uma vez o pavão ergueu a cabeça coroada e soltou um grito; ao mesmo tempo, moveu desastradamente as pernas feias e exibiu a plumagem da cauda, brilhante como uma fonte de estrelas coloridas sobre o pescoço inclinado do anjo.         

- Olhe para aquele vaidoso! Empoleirado num anjo, como quem precisa de pedestal para o seu orgulho! Aquilo é a alma de uma mulher... ou então é o diabo." 


Esta obra inaugural de D. H. LAWRENCE, iniciada em 1906 e publicada apenas cinco anos depois e após ter sido reescrita três vezes e quando o autor tinha apenas vinte e cinco anos, como romance campestre que é, torna-se num hino à Natureza quando faz desfilar por todas as estações do ano tudo o que é bicho ou planta, reflectindo as desconfianças e preocupações que o jovem escritor já tinha na altura em relação ao progresso e à industrialização e ao fim anunciado do mundo natural e bucólico da sua infância... Além disso, e à semelhança de obras magistrais posteriores como "O Amante de Lady Chatterley", "Filhos e Amantes", "Mulheres Enamoradas", "A Virgem e o Cigano" ou "A Serpente Emplumada", esta última a minha preferida, o romance seria proibido no reino de sua majestade durante décadas sob a acusação de ofensa à moral vitoriana e aos bons costumes... Um ataque à opressão do conformismo e um grito de revolta assente na liberdade de expressão sexual, especialmente a feminina, assim se pode caracterizar a obra de Lawrence, a descobrir...  

Diga-se a verdade agora, se não fosse pela liberdade dos sentidos e do sexo seria, nos fanáticos dias de hoje e por colocar em causa os religiosos bons costumes, uma obra proscrita pelos atentados aos direitos dos animais, é que desde a coelhos desmembrados em ratoeiras, a cães mortos à pedrada, a pintainhos incinerados ou gatos piedosamente afogados, de tudo há ali um pouco, afinal não passa de um retrato fiel dos costumes naturais da sociedade da época...

"... calou-se e ficou a olhar para a lua, que boiava através dos ramos negros do teixo.  - Com que então ela morreu... esse pobre pavão, murmurei eu. O homem pôs-se de pé, sem deixar de olhar para o céu, e espreguiçou-se. Era um vulto que se impunha, assim de braços estendidos e recortado ao luar.    - Tenho a impressão que a culpa não foi toda dela, volveu ele.  - Era como um pavão branco, sugeri eu..."


João Vírgula
(Leitor de Valmedo)

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