E aqui estou eu sentado na relva, gozando a temperatura amena e a sombra, de olhar atraído pelas indecisões do galináceo, ora vai para lá, ora vem para cá, por vezes vai para o lado, quieto de vez em quando e de tempos a tempos põe a cabeça à banda e espreita-me só com um olho escuro e inquiridor, como se me perguntasse que direito tinha eu de estar ali no espaço que é dele...
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"Campo Mártires da Pátria" - Jean-Charles Forgeronne |
E estando eu ali por acaso a matar tempo, lembrei-me das galinhas da minha infância que andavam à solta por entre as couves de pé alto e debaixo da laranjeira amarga, debicando e descobrindo minhocas escuras com que engordavam antes de acabarem degoladas sem piedade numa bela cabidela... E depois, claro, assaltaram-me as lembranças dos tempos de faculdade em que passava por aqui, todos os dias e durante meses até à Hematologia do São José enquanto estagiário sob as ordens do Senhor Pereira, humilde e pequena criatura a quem chamávamos injustamente "O Indiano", porque afinal ele era de Goa, essa mítica terra de gente a que não falta nobreza de carácter... O Pereira era daquela estirpe que marca para uma vida inteira, pessoa humilde mas grande de saber feito de experiência, ensinou-me muita coisa que não vem nos livros e nem catedráticos sabem, como sentir uma veia, como adivinhar o seu trajecto e a sua profundidade, características e questões a que nenhum atlas de anatomia responde porque as veias diferem de pessoa para pessoa, qual a inclinação a dar à agulha consoante o local da picada, enfim, um mestre... Nunca mais o vi desde esse tempo de estagiário mas continuo ainda hoje a socorrer-me das suas dicas que, lembro-me agora, bastas vezes eram acompanhadas de uma boa dose de impaciência...
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