quarta-feira, 21 de outubro de 2020

 

MEMÓRIAS SANGUINÁRIAS DO CAMPO...

E aqui estou eu sentado na relva, gozando a temperatura amena e a sombra, de olhar atraído pelas indecisões do galináceo, ora vai para lá, ora vem para cá, por vezes vai para o lado, quieto de vez em quando e de tempos a tempos põe a cabeça à banda e espreita-me só com um olho escuro e inquiridor, como se me perguntasse que direito tinha eu de estar ali no espaço que é dele...


"Campo Mártires da Pátria" - Jean-Charles Forgeronne

E estando eu ali por acaso a matar tempo, lembrei-me das galinhas da minha infância que andavam à solta por entre as couves de pé alto e debaixo da laranjeira amarga, debicando e descobrindo minhocas escuras com que engordavam antes de acabarem degoladas sem piedade numa bela cabidela... E depois, claro, assaltaram-me as lembranças dos tempos de faculdade em que passava por aqui, todos os dias e durante meses até à Hematologia do São José enquanto estagiário sob as ordens do Senhor Pereira, humilde e pequena criatura a quem chamávamos injustamente "O Indiano", porque afinal ele era de Goa, essa mítica terra de gente a que não falta nobreza de carácter... O Pereira era daquela estirpe que marca para uma vida inteira, pessoa humilde mas grande de saber feito de experiência, ensinou-me muita coisa que não vem nos livros e nem catedráticos sabem, como sentir uma veia, como adivinhar o seu trajecto e a sua profundidade, características e questões a que nenhum atlas de anatomia responde porque as veias diferem de pessoa para pessoa, qual a inclinação a dar à agulha consoante o local da picada, enfim, um mestre... Nunca mais o vi desde esse tempo de estagiário mas continuo ainda hoje a socorrer-me das suas dicas que, lembro-me agora, bastas vezes eram acompanhadas de uma boa dose de impaciência... 


Mas deixemos de lado por agora decapitações de galinhas e seringas cheias de sangue, voltemos àquele glorioso tempo em que lá vinha eu caminhando desde a Conde de Valbom até aqui, a este sítio a que agora chamam Campo Mártires Da Pátria e que agora está muito diferente, para depois descer um pouco e entrar no São José para treinar então nos braços de alguns mártires, alguns dos quais só não me guilhotinaram na hora porque o Pereira sempre aparecia com a sua calma para emendar o trajecto ou a profundidade da agulha e assim aliviar o sofrimento das cobaias...  E nunca fazia eu o mesmo trajecto, se vinha pela Luciano Cordeiro então regressava pela Gomes Freire, passando pelo antigo Convento de Rilhafoles onde trabalhou o infeliz Miguel Bombarda assassinado por um doente, e aí lembrava-me sempre daquilo que ouvia quando era moço: "Ganha juízo senão ainda vais para Rilhafoles!", e continuava até ao Fórum Picoas onde me perdia com as novidades tecnológicas que traziam transmissões televisivas de toda a Europa, e no dia seguinte seria ao contrário porque uma rua é sempre diferente consoante se está de frente ou de costas e sempre tive esta mania de não repetir os percursos, vá lá saber-se porquê, será caso para avaliação psiquiátrica?...


João Pica
(Analista de Valmedo)

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