LIVROS 5 ESTRELAS - VIII
EPISÓDIOS ROMÂNTICOS DA ADOLESCÊNCIA...
Acontece que por vezes nos prendemos às memórias por uma fina guita entrelaçada de coincidências que impede que certas ocorrências, por mais ou menos fantásticas que sejam, caiam para sempre no nosso saco do esquecimento... Esse fino fio que me liga ao passado traz-me de volta um belo dia da adolescência, teria por aí uns quinze anos e picos, e subia a colina para o castelo em direcção à Biblioteca Municipal, acompanhado do TóZé, colega preferido de turma, como era costume em certos intervalos das aulas. Íamos em busca dos novos Tintins, Astérix, Michel Vaillant... Mas naquele dia o tema de conversa foi diferente, ainda sob o efeito do recente ultimato do professor de Português:
- Que seca! - exclamava o TóZé - Sabes que é um calhamaço do caraças, chato ainda por cima? São para aí umas setecentas páginas para ler...
E eu, que ainda não sabia o que nos esperava, olhando-o de esguelha e surpreendido pela sua exaltação nada conforme com a sua calma e educação esmerada, não achei melhor para dizer:
- Mas como é que sabes que são tantas páginas? Tens o livro?
- Já estive a espreitá-lo, o meu pai tem um exemplar lá em casa.... E sabes o que vou fazer? Vou ler as primeiras páginas, algumas do meio e o último capítulo e depois faço um apanhado, deve chegar.
Curiosa e surpreendentemente foi fácil convencer a minha mãe a desembolsar os escudos para a compra de tão afamada obra, ainda por cima numa edição de capa rebuscada de um vermelho carregado, convencida pela obrigatoriedade da leitura e pelo importante efeito na educação e no futuro dos jovens alunos deste país... E então, decidido a imitar o plano do ToZé, com o caderno ao lado para resumir a coisa, lá abri o livro com a intenção de ler apenas o princípio, o meio e o fim, mas uma coisa estranha aconteceu, aquilo que deveria ser um castigo, uma tortura sem fim, tornou-se a pouco e pouco numa agradável experiência de prazer, página após página ia seguindo as aventuras, os sonhos e as tragédias de Carlos da Maia, um herói simpático que me caiu no goto... Quando dei por mim, já tinha lido uma terça parte e medindo a posta restante entre indicador e polegar, corajosamente decidi que não iria fazer batota, iria ler o tijolo todo até à última linha, até porque não só me estava a dar gozo como me parecia, naquela altura, bem mais interessante do que o estudo da Matemática trigonométrica ou do papel das moléculas nas ligações químicas...
Na verdade, outras obras do Eça caberiam aqui nas cinco estrelas, "A Cidade e as Serras", "O Primo Basílio", "O Crime do Padre Amaro" que recentementente ganhou outro interesse através do cinema, até a "A Ilustre Casa de Ramires", mas "Os Maias", pela descoberta do prazer da leitura, destaca-se a léguas... E depois, há o lado sensorial da questão, ainda hoje me vejo sentado debaixo da laranjeira da minha avó, à beira de uma eira que já não tinha uso, ouvindo os pássaros em viagens contorcionistas e enebriado com os aromas que vinham da romãzeira encostada ao muro por detrás de mim. De vez em quando, quando a trama se tornava densa, levantava a cabeça de olhos fechados e deixava-me invadir pelas duas naturezas, aquela outra da vida dos heróis românticos e trágicos da cidade e aquela ali, paradoxalmente mais parecida com o ambiente das aventuras de Jacinto pelas serras de Tormes... E coincidência, se desde aquele tempo não tive notícias do Tozé, lembro-me dele por vezes quando passo com os olhos pelo volume dos "Maias" que espreita ali da estante, é que, tal como o Eça, e também filho de advogado, cursou Direito, e ainda o vejo a deliciar-se com a leitura do Astérix...
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)
- Que seca! - exclamava o TóZé - Sabes que é um calhamaço do caraças, chato ainda por cima? São para aí umas setecentas páginas para ler...
E eu, que ainda não sabia o que nos esperava, olhando-o de esguelha e surpreendido pela sua exaltação nada conforme com a sua calma e educação esmerada, não achei melhor para dizer:
- Mas como é que sabes que são tantas páginas? Tens o livro?
- Já estive a espreitá-lo, o meu pai tem um exemplar lá em casa.... E sabes o que vou fazer? Vou ler as primeiras páginas, algumas do meio e o último capítulo e depois faço um apanhado, deve chegar.
Curiosa e surpreendentemente foi fácil convencer a minha mãe a desembolsar os escudos para a compra de tão afamada obra, ainda por cima numa edição de capa rebuscada de um vermelho carregado, convencida pela obrigatoriedade da leitura e pelo importante efeito na educação e no futuro dos jovens alunos deste país... E então, decidido a imitar o plano do ToZé, com o caderno ao lado para resumir a coisa, lá abri o livro com a intenção de ler apenas o princípio, o meio e o fim, mas uma coisa estranha aconteceu, aquilo que deveria ser um castigo, uma tortura sem fim, tornou-se a pouco e pouco numa agradável experiência de prazer, página após página ia seguindo as aventuras, os sonhos e as tragédias de Carlos da Maia, um herói simpático que me caiu no goto... Quando dei por mim, já tinha lido uma terça parte e medindo a posta restante entre indicador e polegar, corajosamente decidi que não iria fazer batota, iria ler o tijolo todo até à última linha, até porque não só me estava a dar gozo como me parecia, naquela altura, bem mais interessante do que o estudo da Matemática trigonométrica ou do papel das moléculas nas ligações químicas...
Na verdade, outras obras do Eça caberiam aqui nas cinco estrelas, "A Cidade e as Serras", "O Primo Basílio", "O Crime do Padre Amaro" que recentementente ganhou outro interesse através do cinema, até a "A Ilustre Casa de Ramires", mas "Os Maias", pela descoberta do prazer da leitura, destaca-se a léguas... E depois, há o lado sensorial da questão, ainda hoje me vejo sentado debaixo da laranjeira da minha avó, à beira de uma eira que já não tinha uso, ouvindo os pássaros em viagens contorcionistas e enebriado com os aromas que vinham da romãzeira encostada ao muro por detrás de mim. De vez em quando, quando a trama se tornava densa, levantava a cabeça de olhos fechados e deixava-me invadir pelas duas naturezas, aquela outra da vida dos heróis românticos e trágicos da cidade e aquela ali, paradoxalmente mais parecida com o ambiente das aventuras de Jacinto pelas serras de Tormes... E coincidência, se desde aquele tempo não tive notícias do Tozé, lembro-me dele por vezes quando passo com os olhos pelo volume dos "Maias" que espreita ali da estante, é que, tal como o Eça, e também filho de advogado, cursou Direito, e ainda o vejo a deliciar-se com a leitura do Astérix...
João Vírgula
(Leitor de Valmedo)
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