OBITUÁRIOS E OUTRAS CENAS DOMÉSTICAS...
Quantas vezes já tinha passado por ali, milhares, milhões? De facto, não interessa muito a contabilidade, até poderia ter reparado logo à primeira mas acontece, por vicissitudes várias concerteza, que nunca tinha até ontem perdido um segundo do meu mui valioso tempo com a cena que se oferece ao incauto cidadão que se dirija à escadaria do nobre edificío que alberga o Tribunal e as Conservatórias dos Registos Prediais e Civis da Lourinhã, capital jurássica e de Verde-Erva-Sobre-O-Mar, para esperar na fila entretanto já longa...
E se a manhã for simpática como foi o caso, fria mas solarenga, até podemos dar engenhosas graças a quem planeou este edifício virado a sul, de altos e convidativos pilares onde uma alma se pode encostar e receber em plena face os quentes e justos raios do real astro... E depois algo chama a atenção, enquanto deste lado uns estão a braços com um qualquer mísero assunto mundano relacionado com a existência ou com a propriedade, outros, mais espirituais, começam a emergir da escura e longa noite imbuídos de nobres e elevados sentimentos comunitários e religiosos... Curiosos, atravessam a rua, passam diante da porta da Igreja do Convento de Santo António, ainda fechada, e quedam-se defronte de uma estrutura singular, uma singela vitrine pintada de branco tal qual a alvura da estátua de uma imaculada personagem erigida mesmo ao lado: JOÃO XXIII!
Olham, lêem, voltam a olhar, trocam olhares, baixam a cabeça ou seguem, eventualmente indiferentes, rumo à rotina engendrada pelos deuses... Estas pessoas são a identidade de uma pequena civilização jurássica, familiar nos laços porque pequena e afectuosa nos gestos porque sim, faz parte, atenciosa para com os seus semelhantes, muitos deles desconhecidos... E é uma raridade este fenómeno, ausente das grandes e desumanas cidades desta era virtual em que os obituários são comunicados enfáticamente pelas redes sociais e em que as páginas dos jornais dedicadas a tal assunto não são compradas nem lidas, haver em pleno século XXI um santuário destes, uma plataforma que liga as pessoas e as memórias, é um autêntico milagre...
- "Olha, estudou comigo...", ouve-se dizer!
- "Olha, estudou comigo...", ouve-se dizer!
E ao lado, impávido e sereno, apaziguador, JOÃO XXIII, aquele mesmo que deve ter tido uma visão divina às portas da morte, célebre por ter convocado o maior concílio da história, 2500 padres fechados a discutir questões estéreis de pecado e santidade...
- Senha A- 01! - ouve-se dizer....
Sou eu, e lá vou para o que der e vier, oxalá seja assim quando tiver que prestar contas a São Pedro...
João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)
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