CURIOSIDADES DO MUNDO CÃO - X
O CASAMENTO DO ARROZ E DO IDÊNTICO
Enquanto abria a porta do carro ouvi um suspiro canino atrás de mim, não seria preciso voltar-me para saber que, como habitualmente nas partidas e chegadas, ansioso e de orelha caída nas primeiras e aos saltos exaurientes nas segundas, lá estaria o James pendurado na grade do muro...
Não precisava ele de falar, adivinhava-se o que queria: ouvir da minha voz onde ia eu e se demorava muito...
- Calma, bicho! Ainda não é o nosso treino, só amanhã...
E então ele, inclinando a cabeça, olhou-me para as pernas e reparando certamente que eu não estava equipado de fato de treino e sapatilhas, acalmou...
- Hoje vou só lá abaixo à vila renovar o meu cartão de cidadão!
- E o meu boletim sanitário e o meu registo? - perguntou-me ele num olhar incisivo dos seus olhos cor de mel...
- Ainda te lembras disso? Não, não é preciso, está tudo em dia. Volto já! E amanhã iremos treinar por Verde-Erva-Sobre-O-Mar, prometido!
E enquanto descia a estrada deixando para trás o Casal Valmedo e o Casal da Gaita em direcção à Lourinhã, a capital dinossáurica deste mundo e arredores e também de Verde-Erva-Sobre-O-Mar, o território canino ocupado pelos antepassados do James antes de a humanidade se instalar por aqui, pensava eu como os cães conseguem também ter memória de elefante no que concerne a cheiros, sons e contactos com pessoas especiais para eles, como os veterinários... E depois como foi gratificante aquela hora matinal que passei na Conservatória do Registo Civil, rapidamente esqueci o desconforto que espera o cidadão naquele exíguo corredor de espera e até consegui perdoar o barulho irritante, produzido primeiro pelos funcionários num arranque conturbado de dia e depois por quem reclamava da lentidão no arranque do viciado sistema informático, ao deparar com um aviso deveras interessante:
Pelos vistos, o casamento é um grande risco para noivos e convidados devido ao ARROZ e ao IDÊNTICO, os quais parecem passíveis de criar graves acidentes! Ora, a tradição de felicitar os noivos com uma chuva de arroz tem barbas, remonta há mais de 4000 anos quando na China Antiga um alto dignitário do estado encomendou uma chuva do abençoado grão para o casamento da sua filha com o intuito de demonstrar os seus votos de prosperidade ... Não havia melhor escolha já que o arroz sempre tinha sido a base da alimentação de muitos povos do continente asiático e naturalmente tornou-se ao longo dos séculos um símbolo de prosperidade e fertilidade. O casamento da filha do tal inventor da ideia deve ter resultado muito bem, a moça terá sido muito feliz com o seu noivo e terá decerto dado à prole uma carrada de filhos saudáveis porque passou toda a gente a imitar o gesto, até hoje...
Mas entretanto as coisas já não são o que eram, talvez devido ao seu custo ou outra mania qualquer, os nubentes de hoje passaram a substituir o arroz pelo IDÊNTICO, pelos vistos ao gosto de cada um, numa afronta ao espirito sagrado das milenares tradições e superstições: ele pode ser os cotovelinhos, as espirais, os bagos, os cuscus, as pevides, até o macarronete...! Talvez seja por esta adulteração que o casamento anda pelas ruas da amargura, e se já perdeu muito estatuto e credibilidade corre ainda o risco de vir a ser considerado coisa esquisita de gente estranha. E de muita coragem precisam os coitados dos noivos porque mesmo antes das previsíveis fracturas da relação matrimonial que de santidade pouco já tem, começam logo por correr os riscos de fracturas devido ao arroz e ao idêntico... E finalmente, que desperdício, tanto arroz deitado ao lixo, mais valia alimentar com ele bocas famintas ou os convidados da boda ao sabor de um arroz de grelo, arroz malandrinho ou arroz de mexilhão...
João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)
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