domingo, 19 de novembro de 2023

 

LENDAS E NARRATIVAS - XVIII

QUEIMANDO MAUS ESPÍRITOS E BRUXAS


A luz pálida do entardecer embelezava o vale e enquanto descíamos aos ziguezagues pelo caminho de terra bastante sulcado pelas últimas chuvadas tive a sensação de que estávamos prestes a entrar noutra dimensão e tentava convencer-me de que não estava apenas a ser sugestionado pelo carácter especial da reunião, parecia-me mesmo que iríamos em breve mergulhar num mundo de maravilhosas coisas e como a escuridão ainda não engolia o cenário já se vislumbrava lá ao fundo os contornos encantadores da Capa Negra...  



Os amigos iam chegando alegres e carregados de iguarias para a celebração, calhava ser sábado e dia de descanso para alguns, de folga para outros e dia de santo magusto para todos... E enquanto a mesa ia ficando composta e a Dininha andava lá fora desafiando o lusco-fusco de volta das brasas para a prometida castanhada, iam nascendo como cogumelos conversas de actualização dos acontecimentos desde a última reunião, há sempre novidades acerca deste mundo-cão que gira depressa demais...   



Mas esta noite em particular trazia outro aliciante, depois das castanhas e da ceia entraria em cena a saudosa queimada, ideia da e coisa que já não era feita por nós há décadas... E que melhor ocasião para encenar esse ritual de afastamento de maus espíritos, bruxas e maus-olhados do que uma reunião de amigos e em que alguns deles têm tido tão pouca sorte entretanto que até parece terem sido amaldiçoados? Obriga a tradição oriunda da Galiza e do norte de Portugal que após a ceia e na obscuridade da noite se reúnam os comensais ao redor do pote onde se vai elaborar esse purificador licor, de preferência com as luzes apagadas...   




Manda a lenda que num pote de barro se deve botar a aguardente (e neste caso o Jorge Humberto fez questão de ser uma de medronho lá do Estreito, mal empregada pensei eu!) e o açúcar amarelo na proporção de 120 gramas por cada litro; depois juntam-se pedaços de maçã, uvas, cascas de limão ou de laranja e alguns grãos de café por moer; mexe-se tudo; à parte, colhe-se uma porção da bebida com uma concha, sem limão nem café, e pega-se-lhe fogo; seguidamente introduz-se a concha a arder no pote e mexendo devagar vai-se permitindo que as chamas do álcool subam em cascata... Espera-se que a queimada se apague por si própria e depois há que recitar o esconjuro, desta feita a meu encargo:




"Mochos, corujas, sapos e bruxas.
Demónios, trasgos e diabos,
espíritos das enevoadas veigas.
Corvos, píntigas e meigas:
feitiços das mezinheiras.
Podres canhotas furadas,
lar dos vermes e alimárias.
Fogo das Santas Companhas,
mau-olhado, negros feitiços,
cheiro dos mortos, trovões e raios.
Uivar de cão, pregão da morte;
focinho do sátiro e pé do coelho.
Pecadora língua da má mulher
casada com um homem velho.




Averno de Satã e Belzebu,
fogo dos cadáveres ardentes,
corpos mutilados dos indecentes,
peidos dos infernais cus,
mugido do mar embravecido.
Barriga inútil da mulher solteira,
falar dos gatos que andam à janeira,
guedelha porca da cabra mal parida.
Com este fole levantarei
as chamas deste fogo
que assemelha o do Inferno,
e fugirão as bruxas
a cavalo das suas vassoiras,
indo-se banhar na praia
das areias gordas.



Ouvi, ouvi! os rugidos
que dão as que não podem
deixar de se queimar na aguardente
ficando assim purificadas.
E quando esta beberagem
baixe pelas nossa goelas,
ficaremos livres dos males
da nossa alma e de feitiço todo.
Forças do ar, terra, mar e fogo,
a vós faço esta chamada:
se é verdade que tendes mais poder
que as humanas pessoas,
aqui e agora, fazei que os espíritos
dos amigos que estão fora,
participem connosco desta Queimada."



"Os amigos"

E que deliciosa estava a queimada...


João Abelhudo

(Pesquisador de Valmedo)

1 comentário:

  1. O Esconjuro é, seguramente, letra para integrar próximo álbum dos Mão Morta ou do Adolfo Canibal...

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