sexta-feira, 24 de novembro de 2023

 

CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - XLV

O MISTÉRIO DA ESTRADA DO TOXOFAL


Não, caro amigo leitor, esta não é uma sequela de "O Mistério da Estrada de Sintra", a primeira narrativa policial da literatura portuguesa, escrita a meias por dois grandes amigos, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, que durante dois meses do verão de 1870 a enviaram diariamente sob a forma de cartas anónimas para o Dário de Notícias que por sua vez as publicava como se de reportagens verídicas se tratassem, e apesar do grande sucesso a obra só seria publicada em livro 14 anos mais tarde... Enquanto pela estrada de Sintra o mistério envolveu um rapto e um assassinato por aqui pelo Toxofal o mistério deve-se a uma caixa de correio, isso mesmo, não leu mal, uma enigmática caixa de correio!
A estrada que liga a Zambujeira ao Toxofal de Baixo tem dois quilómetros de extensão, isto é, menos de meia légua se preferirmos medir à maneira do Sherlock Holmes e é ladeada por eucaliptais, terrenos de cultivo e alguns pomares e quem desce para o vale depara-se a meio com uma cena bastante invulgar: à beira do caminho e à frente de umas antiquíssimas ruinas alguém se deu ao trabalho de plantar uma caixa de correio novinha em folha, com fechadura e tudo, assente num alvo pilar de pintura ainda fresca!
Não há vivalma por ali a não ser algum animal selvagem que se esconda no mato, a casa em ruinas é inabitável há séculos e as casas mais próximas estão bastante longe, que raio? E depois reparo então no pormenor do azulejo com o número 56, mas que é feito da sequência? Seria suposto encontrar os números de porta 54 ou 58 nas casas mais próximas mas não faz sentido, elas estão tão longe e em ruas tão pequenas que nem até ao 10 se conta... 



Coitado do carteiro que ali tiver que entregar uma carta registada e que bem pode morrer à espera que alguém o atenda! Sigo viagem e enquanto não encontro ninguém que me esclareça o significado do insólito achado vou matutando naquele mistério e baseado na minha própria experiência só me vem uma solução lógica à cabeça: porventura será um grito de revolta por causa de uma merdança! Uma merdança é uma herança de merda, um presente envenenado que só traz chatices e nenhum proveito a quem a recebe e ainda que não a queira herdar, por exemplo uma casa velha e ilegal como me aconteceu, ser responsável por uma merdança pode causar aos mais frágeis sérias úlceras nervosas, para a legalização de umas ruinas é preciso entrar com todo um conjunto de projectos, autorizações, pareceres e taxas para aqui e para acolá como se fosse construir um palácio novinho de raiz! A burocracia e os custos relacionados com a habitação e até terrenos rústicos é tal que desmoraliza o santo mais paciente neste país alicerçado nos impostos; e depois, quem quiser vender uma casita por mais modesta que seja tem que ter consigo a bendita licença de utilização, esse santo graal que só serve para se desistir em muitos casos antes de se cair na penúria e então se a casa foi construída depois de 1951, ainda que em ruínas, o calvário ainda é maior, apenas estão isentas as contruídas antes daquele ano, vá lá encontrar-se lógica ou proveito nesta insanidade! Ora, agora que estou a chegar a casa sinto orgulho nas minhas células cinzentas e convenço-me de que resolvi o mistério: alguém herdou aquelas ruinas que outrora foram uma casa construída em 1956 e para se desfazer daquilo tem que fazer obras e obter licença para tal ou então demolir, em qualquer dos casos perde tempo, saúde mental e rios de dinheiro nas taxas e mais taxas que o esperam... Aquela caixa de correio é portanto, diz o meu Poirot interior, um monumento irónico às merdanças deste mundo-cão! Será?  


João Abelhudo

(Investigador de Valmedo)

1 comentário:

  1. A minha interpretação é esta: alguém começou a desemerdança pelo fim e até está catita...

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