quarta-feira, 17 de outubro de 2018


CRÓNICA DE UM RESGATE

ou

A natureza não é para almas sensíveis


Primeiro parecia o guincho de uma ave, de tal forma o som era agudo e lancinante, ecoando pela floresta ainda a acordar de uma noite húmida mas, olhando para o alto por entre as copas dos pinheiros e dos eucaliptos, não se vislumbrava nenhuma silhueta de asas pairando sobre crias ameaçadas pela presença de um predador inesperado, nem águia ou milhafre ou o quer que seja... Tentei continuar a corrida mas o apelo frenético que vinha do interior da mata era de tal forma estranho e pungente que abandonei o trilho e fui investigar, curioso, cauteloso... 
Minutos antes tinha eu desligado o motor do carro, aberto a porta e trocado os ténis mundanos pelos de corrida e de óculos na cabeça e chave e telemóvel no bolso, não faltava nada, ala que se faz tarde para mais um treino pela floresta e agora, ali me encontrava eu, olhar aguçado e olfacto apurado, qual animal selvagem, tentando descortinar a entidade camuflada que emitia tão sentido apelo... Sob os meus pés estalavam as ramagens e as folhas defuntas resultantes do último abate e eis que avançando uma trintena de metros me deparo com um cenário transcendente: aprisionada num emaranhado de ramos e folhagens debatia-se, sem sucesso, uma pequena e indefesa criatura... As suas imaturas patinhas estavam reféns de uma urdidura de ramos secos que tornavam impossível outro desfecho que não fosse a morte por esgotamento... Tinha-se perdido do seu rebanho certamente, ninguém, tanto a mãe caprina como o pastor diligente, tinham reparado no que tinha ficado para trás, um recém-nascido indefeso...





Que raio? Que fazer? Perguntava-me eu já com o bicho ao colo... E ele continuava a gemer, coitado, desconfiado da minha presença.
   -Calma!- sussurrava eu, vamos resolver isto. - Onde é a tua casa? - perguntava-lhe, inocente, sem receber outra resposta que não fosse o apelo desesperado por alimento e conforto... A débil criatura não se aguentava nas patas e soçobrava, gemendo, e quando pegava nela ao colo procurava desalmadamente o meu mamilo de atleta em busca alimento...
   - Vamos chamar-te Tálento, ouviste? Se não fosse este vício das corridas e morrias ali à fome...
A aldeia estava a uns dois, três quilómetros, no máximo, o campanário da igreja já se via ali  à frente, que raio, para alguém que treinava para a maratona esta seria a corrida por uma vida, por um final feliz...



A aldeia, deserta como é natural hoje em dia em todas as aldeias, ainda acordava para mais uma jornada de azáfama nas hortas ou nas fazendas mas eis que, saindo do nada, uma lambreta assoma à rua com um Anjo a cavalo, anacrónico pormenor numa ocorrência já de si extraordinária:
    - Amigo, onde encontro por aqui um rebanho que perdeu este infeliz?
    - É macho? - limitou-se a perguntar o meu interlocutor, recolhendo as asas...
    - De facto! - respondi eu após ter consultado pela primeira vez  os averbamentos do animal...
    - Então, esqueça... É um recém-nascido. Onde o encontrou? - e franziu tudo, o sobrolho, a testa, os olhos, as bochechas...
     - Além, na floresta. - disse eu, apontando para o matagal ao longe, ainda com alguma esperança.
      - Ouça... - e eu ouvi....

O Anjo, descido de outro mundo menos cruel, habitava ali há pouco tempo mas já se apercebera, entre outras coisas, de algumas estranhas práticas relacionadas com o pastoreio caprino, machos a mais significaria leite a menos nas tetas das mães cabras, menos rendimento, mais conflitos no rebanho! Ele próprio já tinha um dia aceite dois bodezinhos de presente mas a criação não tinha vingado, carentes do leite materno e reféns do leite industrial os bichos não tinham resistido.




Sofreu, como eu agora estava sofrendo ao olhar para esta pequena criatura, dócil, esperta, confiável, amiga, que belo animal de estimação daria? Talvez... Mas não, nem o Anjo nem eu podíamos ficar com esta incumbência...
   - Não, não vou ser a devolver esta criatura àquele destino atroz! Recuso-me! Ajuda-me! Talvez se tenha mesmo transviado do rebanho....
    O Anjo abanou a cabeça, baixou os olhos para o chão e murmurou:
   - Podemos sempre deixá-lo perto da mãe... Quem sabe o que pode acontecer, talvez ocorra um milagre....
     E assim fizemos, devolvemos o bode Tálento às suas origens, ali o deixámos prostrado debaixo de um manso pinheiro e com as cabras a espreitar do redil, à espera do destino que uma ausente alma humana iria traçar...

Agora, voltemos ao princípio, primeiro parecia o guincho de uma ave... A pequena e indefesa criatura tinha sido aprisionada na urdidura de ramos secos e ramagens, prometido banquete para as raposas do bosque encantado... E os rebanhos e o mundo haveriam de continuar a rolar por esse cosmos afora....


João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)

Sem comentários:

Enviar um comentário