LIVROS CINCO ESTRELAS - I
A MISERÁVEL CONDIÇÃO HUMANA
Há livros assim, pequenos mas grandiosos... Arturo Pérez-Reverte, em 1993, foi publicando sob a forma de folhetim no diário El País uma narrativa, simultâneamente sinistra e hilariante, baseada num acontecimento real ocorrido durante a invasão napoleónica da Rússia, em 1812. A história narra as aventuras de um batalhão constituído por soldados espanhóis, antigos prisioneiros alistados compulsivamente no exército gaulês e que, durante um combate claramente favorável aos cossacos e em que se anunciava uma chacina de muita carne para canhão, tenta desertar e passar para o lado dos Russos, logrando apenas salvar a pele...
Ironicamente, do alto da sua colina e através do seu óculo, o grande Napoleão, que era esperto mas também baralhava as ideias por vezes, induz-se em erro e transforma aquele acto de traição em heroísmo, fazendo dele um exemplo para as suas tropas e decide enviar a sua cavalaria em auxílio daquele bando de heróis que, julgava ele, se sacrificava em nome da grande pátria francesa...
Certo é que, imprevisivelmente, o rumo da batalha muda e os franceses obrigam os russos a recuar, para descontentamento dos espanhóis que viram a sua fuga abortada e para gáudio do Imperador que vê o caminho mais aberto para avançar sobre Moscovo... Saíram menções honrosas e medalhas para o pescoço dos espanhóis mas de pouco lhes valeriam, a eles mas também a Bonaparte que entraria numa cidade deserta, sem ninguém para lhe prestar honras e vassalagens, parece até que o pequeno grande homem amuou por causa disso, os russos tinham debandado e com requintes de malvadez pegaram fogo àquilo tudo, para os franciús nem palácios, nem ouro, nem mulheres, nem comida, nem nada, apenas a triste desolação duma cidade em chamas...
Mas o pior ainda estava para vir, numa retirada desastrosa a Grand Armée, do seu meio milhão de homens inicial ficaria reduzida a 27000, aqueles que conseguiram sair da Rússia e que milagrosamente escaparam à fome, ao frio, à doença, aos ataques de camponeses e bandidos, aos lobos... Entretanto Napoleão regressaria a Paris para acautelar o seu cargo, agora que perdera a aura de invencível, abandonando os seus soldados aos humores do destino... De pouco lhe serviu, nunca mais voltaria a ser o mesmo, imperial não seria o seu futuro e a história da Europa seria outra bem diferente daquela que o corso tinha idealizado...
Pelas páginas de "A Sombra da Águia" perpassa sobretudo uma visão cínica mas bem-humorada da condição humana e das suas vicissitudes, do miserável valor que toma a vida sob condições extremas, como a guerra ou o abuso de poder, num quotidiano de desespero...
João Pena-Seca
(Escritor e Crítico Literário de Valmedo)
Sem comentários:
Enviar um comentário