sábado, 17 de março de 2018



EFEMÉRIDE #42

AS ÁGUAS DE MARÇO


Canções há que nos trazem o tempo de volta, a luminosidade primaveril do caminho para a escola, o frenesim do recreio com a bola no centro do mundo, o cheiro a laranja descascada no degrau da cozinha enquanto do barracão, onde alguém dava nós na guita azul que amarrava as meadas de tripa, vinha do rádio a pilhas aquela voz que nunca se esquece:


(...) É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira...

(...) É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração...


Elis&Tom - Águas de Março


Só muito mais tarde, quando já tinha deixado a fisga de lado e o exercício de pontaria à passarada, os calções sujos e por vezes rasgados nas quedas pela ribanceira e outros sonhos de infância, é que soube a história daquela voz e daquela canção a meias com TOM JOBIM, ele que a tinha escrito e composto dois anos antes, em Março de 1972, quando atravessava uma fase complicada da sua vida e era perseguido pelo regime... 
ELIS REGINA, nascida a 17 de Março de 1945, comemoraria hoje o seu 73º aniversário se fosse viva e não tivesse partido deste mundo pequeno para ela, aos 36 anos, no auge da carreira, vítima da maldita cocaína...  Considerada em todo o mundo uma das melhores cantoras de sempre e dona de uma voz ímpar à qual dedicou muita hora de treino que lhe conferiu uma técnica aprimorada, tornou-se símbolo da bossa nova e da contestação à ditadura militar instaurada no Brasil...




E se Elis Regina não viveu o suficiente para assistir à queda da ditadura ou para nos brindar com mais interpretações extasiantes, aquilo que nos deu já foi o suficiente para comemorarmos por ela a alegria de viver, com um sorriso e em liberdade, debaixo das águas de março que anunciam a primavera...


João Sem Dó
(Musicólogo de Valmedo)

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