sábado, 2 de dezembro de 2023

 

TERAPIA M𝄞SICAL


Começo por declarar que a culpa desta crónica hospitalar não é minha, antes é da música, não apenas de uma música em particular mas da música em geral que, estou desconfiado, parece ser o cimento que liga toda a beleza, todo o mistério e todas as incongruências deste mundo-cão e ao qual que lhe dá muitas vezes não só um sentido mas também um refúgio para expiação dos meus pecados... Querem um exemplo? Reparo agora que, enquanto matraco este pobre teclado e as palavras vão aparecendo no monitor, o faço ouvindo Vanessa Daou cantando um poema da feminista Erica Jong numa gravação dos "Muitos Mundos" na Antena 3 e de facto, se estivermos atentos, todos somos confrontados diariamente com muitos mundos, como foi o caso quando ela, carregando o seu mundo, entrou na Sala de Colheitas para fazer análises...

Ela era uma grávida vinda da Consulta de Bem-Estar Fetal e assim que entrou na sala agitada eu cheirei-lhe algum nervosismo, ela ali, estacada de senha na mão aguardando um sinal, e então eu disse: "Bom dia, o seu nome completo?". Depois viriam as perguntas e as observações oficiais da minha cartilha: "Ponha aí as suas coisas e depois sente-se aqui nesta cadeira, por favor"; depois seria "Qual o braço melhor para o castigo, onde tem a melhor veia?"; depois "Feche a mão, não mexa agora!"; "Pronto, pode abrir, carregue aqui com força!"; e passados dois ou três minutos enquanto ponho o penso rápido "Pode tirar, bem disposta?; finalmente, "Pronto, despachada! Tenha um bom dia..."
Felizmente na maioria dos casos o atendimento é assim, rápido e eficiente para satisfação de todos e especialmente daqueles utentes que se querem ver dali para fora o quanto antes mas nem sempre é assim, há casos em que a estratégia tem de ser outra como nas situações de veias difíceis ou inexistentes em adultos ou então crianças que entram em pânico e o estendem aos pais, gente que não pode ver sangue ou com fobia a agulhas, ou ainda nos muitos idosos que se pudessem por ali ficar a manhã toda a trocar conversa e assim apaziguar a solidão... Muitas vezes perco demasiado tempo mesmo sem tempo para tal, as pessoas não podem ser apenas números para estatísticas, às vezes um pouco de atenção torna-se uma poderosa terapia e mais eficaz que muito comprimido... E não é que assim corro grande risco de ser pouco produtivo?!  Ainda me lixo um dia destes... 



Mas no caso da Ivania, assim se chamava a grávida sentada na minha cadeira, a cartilha foi imediatamente posta de parte quando me mostrou o braço tatuado para a picada e eu leio em voz alta para ela também ouvir: 

"I'll tell you
 my sins and you
 can sharpen your
 knife"

- "Bem, - disse eu com a borboleta na mão e com alguma esperança de ter piada - não tenho faca mas afiei a minha agulha, vamos a isto?
Felizmente ela sorriu, sinal de que o nervosismo estava controlado e depois, já com a seringa atestada, não resisti:
- "Donde é que vem isto? Um poema?" 
- É de uma música... do Ozier... - responde-me ela de olhar desafiante...
E eu que, completamente às aranhas, não me lembrava de nenhum Ozier, quem seria, um artista novo? - interrogava-me - ainda tive que ouvir alguém do outro lado da sala a dizer pomposamente:
- "Take me to the church", é o nome da canção!
- Isso mesmo! - disse uma sorridente e aliviada Ivania... 
E eu, metendo a ignorância musical no saco, despedi-me da Ivania com um sorriso retribuído e imaginando que mundo ela carregaria, seria aquele um poema de amor ou de catarse religiosa? Que seja feliz, é o que importa...
Infeliz tenho eu andado depois de descobrir o "Take me to the church", editado há dez anos (!) e que me passou completamente ao lado... Bem, mas a distracção e a alienação também fazem parte do mundo-cão, ou não?




OZIER - Take me to the church


João Butterfly

(Analista de Valmedo)

Sem comentários:

Enviar um comentário