quinta-feira, 11 de maio de 2023

 

O DIABO TAMBÉM MORA NA CATEDRAL


Bastaria a sua monumental dimensão para justificar uma paciente e apurada visita à catedral de Segóvia mas também servem de aliciantes o facto de ter sido a última catedral gótica a ser construída em Espanha (1525) e a curiosidade de ainda se poder ser surpreendido por duas pinturas desconcertantes...

E quem diz que ele está por todo o lado tem mesmo razão, ali em plena catedral encontra-se o Diabo enquanto personagem alada e chifruda da "Él Árbol de la Vida", obra do pintor flamenco do século XVII Ignácio de Ries; nessa proverbial pintura, enquanto toda a gente participa despreocupadamente num banquete anunciador de orgia, uma luta de forças invisíveis tem lugar: por um lado Cristo, aparentemente sem sucesso, tenta alertar a humanidade para a ameaça das conspirações ocultas do maligno e por outro a morte, manietada pelo demónio, vai trabalhando incessantemente na procura da desgraça... E enquanto uns dizem "repara que vais morrer, repara que não sabes quando" outros avisam "repara que Deus te observa, repara que te estão observando", e à época obscurantista e inquisitorial observar então aquela árvore da vida seria suficiente para tirar dias e dias de sono a qualquer temente às vicissitudes deste misterioso mundo-cão


"El Árbol de la Vida", 1656 - Ignacio de Ries - Jean-Charles Forgeronne

Depois, ao subir a escadaria que leva à exposição de tapeçarias, o incauto visitante pode ser traído pelos seus olhos e pela perfídia do Diabo e levado a pensar que aquilo que está a ver é uma afronta à moral e aos bons costumes, nada menos do que uma pintura que retrata um velho a sugar o mamilo de uma jovem, onde já se viu isto? Nem nos dias que correm quanto mais no século XVII! Erotismo perverso numa catedral? 


"Caridad Romana" - Anónimo, séc-XVII - Jean-Charles Forgeronne

Mas depois, santa ignorância desfeita, olha-se para a coisa com outros olhos: a cena retratada e aparentemente verídica prende-se com a experiência de Cimon, um idoso preso por rebeldia e condenado a morrer à fome e que ao receber a visita diária da sua jovem filha, Pero, é por ela amamentado por misericórdia e com a conivência  do carcereiro...  A história foi descrita pelo escritor romano Valerius Maximus  nos seus "Feitos e Ditos Memoráveis" e tornou-se viral nos séculos XVI e XVII por toda a Europa, não só na literatura como também na pintura e na escultura, ficando conhecida como a "Caritas Romana" e chegando ao ponto de um cônsul romano ter mandado construir no local dessa antiga prisão um templo dedicado à "Piedade", assim o afiança o insuspeito historiador Plínio, o Velho...

 
João Alembradura

(Historiador de Valmedo)

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