CAMINHO FEITO DE POEMAS E MÚSICA...
Pode passar despercebido a quem passa no largo a olhar para outras coisas mais imediatas como a pequena mas belíssima igreja ou o chafariz do século XVII ou até a enorme tenda literária instalada para estes dias mas o Jardim do Solar da Praça de Santa Maria, em Óbidos, é um surpreendente recanto encantatório, especialmente quando ao anoitecer se é brindado com música e poesia... E assim, sob os braços gigantescos de uma vetusta nogueira e vendo o espectro luminoso reflectido num limoeiro também já velho, embarcamos numa viagem sonora a bordo de um louco navio na companhia da viola campaniça de João Morais, também chamado de "O Gajo", do contrabaixo do Carlos Barreto e da voz e dos poemas de José Anjos, que também tamborilava o ritmo... E numa mistura de sons e palavras declamadas que nos transportam para o sul e até para as arábias ainda couberam alguns poemas de Cláudia Sampaio ditos pela própria e a noite foi levemente ficando cada vez mais doce...
![]() |
"O Navio dos Loucos" - Jean-Charles Forgeronne |
O caminho é o poema
É uma linha lenta
sempre recta, sempre certa, incerta
para onde quer que se vire
é uma linha lenta
sempre recta, sempre certa, incerta
para onde quer que se vire
o caminho é como o poema
revela-se e auto destrói-se nesse preciso momento
torna-se desnecessário,
irrepetível, em vício ermo de um deus obsoleto
O caminho é como o poema
depois de percorrido até ao fim, torna-se outro
e outro e outro e outro e outro
até chegar aqui, a este lugar onde acabo
e parto com uma única certeza
a de que não poderei continuar em frente
por isso paro.
![]() |
"Solar de Santa Maria" - Jean-Charles Forgeronne |
Paro por uns instantes e olho para trás,
não para fugir
mas apenas para contemplar uma última vez
as ruínas os poemas as portas que escolhi
agora são ombros sem cabeça sem carne sem sombra
são esqueleto cimento
nuvem noite e silêncio seco, morto
são pedaços de sol morto com vários nomes que trago comigo
cabelos e pele
pessoas inteiras que não consegui recuperar
da condição mágica e cruel do sonho
por mais que as segurasse
é uma linha lenta sempre recta, sempre certa, incerta
para onde quer que se vire
é uma linha lenta sempre recta, sempre certa
incerta, certa
para onde quer que eu vire
o caminho é o poema
é uma linha lenta sempre recta, sempre certa, incerta
para onde quer que se vire
o caminho é como o poema,
ainda não existe
por isso no bolso trago apenas a moeda de Heisenberg
com o saldo da minha vida
de um lago crédito
do outro dívida
uma linha lenta
sempre recta, incerta
uma linha lenta sempre recta, incerta
de um lado crédito, do outro dívida
saberei quanto pagar?
José Anjos in "Manual de instruções para desaparecer"
João Palmilha
(Viajante de Valmedo)
Sem comentários:
Enviar um comentário