domingo, 22 de novembro de 2020

 

ARTE PARA OS PÁSSAROS E OUTROS DRONES...



Aqui estou eu, arrepiado até ao tutano ao sentir a água gelada subir por mim acima, aguentando estoicamente a espuma das vagas da maré enchente de braços ao alto enquanto seguro no telemóvel a mãos ambas, numa inclinação calculada e a disparar retratos como se não houvesse amanhã, na esperança de captar sob a luz certa e o ângulo correcto a cara do Saramago e enquanto isso, talvez para não soçobrar perante algum ridículo que não-sei-quantos pares de olhos que me observam me pudessem apontar, lembro-me das palavras do mestre: "a vida é uma coisa urgente de se viver!"... Subo a jangada de pedra sem coragem para consultar na minha humilde tecnologia ambulante o fruto da minha expedição e passo ao lado do mascarado impassível que de olhos mergulhados no pequeno ecrã manobrava a pequena passarola voadora lá no alto até que, de repente, uma veneta ribatejana me assalta e faz-me dar dois passos atrás e botar conversa: 

    - Só assim é que se consegue ver, não é? - lancei enquanto me aproximava...


"Arte celestial"

O homem, não-novo e não-velho, vindo sabe-se lá de onde, talvez de perto talvez de longe pois parece que há uma frenética romaria para ver a novidade, não se incomodou com a minha abordagem e continuou a digitalizar enquanto dizia algo do género "pois, é preciso ter o ângulo certo e a luz certa"... Vendo que ele não se incomodou com a minha proximidade arrisquei uma espreitadela e vi  no pequeno ecrã do comando, tal qual no vídeo publicado pelo VHILS, Saramago em todo o seu esplendor a ser lambido pelas águas do Atlântico!

  - Isto é a imagem em tempo real? - aventurei-me a perguntar enquanto olhava para o céu em busca do pequeno, escuro e silencioso besouro mecânico que ali pairava ..

   - Tal qual!

E eu, baixando o olhar para o chão, para a obra propriamente dita, apenas conseguia vislumbrar os óculos do Nobel, tudo o resto tinha que ser imaginado, era questão de uma estranha fé própria dos modernos tempos de veículos aéreos não tripulados, qualquer dia até a vida será não tripulada, mas sabia eu que ele lá estava porque tinha visto no computador, agora confirmava que ele ali estava à minha frente, debaixo dos meus pés mas que o simples olhar não alcançava por mais que tentasse, era preciso ver através de uma câmara pendurada lá no alto! Raios, é de génio, uma obra fantástica que desafia simultaneamente o olhar humano, a natureza e a tecnologia, homenagem maravilhosa a quem sempre desafiou os limites do entendimento das misteriosas coisas do mundo-cão... E se já o Vieira dava sermões aos peixes agora o Saramago fala com os pássaros...


"Jangada de Pedra" - Jean-Charles Forgeronne

E aqui vou eu de regresso pelo areal, embalado pelo deslumbrante sol posto que me faz pensar na vida e na morte, no visível e no idealizado, no corpo e na alma, nos mistérios do mundo afinal... Desde o dia em que VHILS ofereceu esta obra a esta minha costa lourinhanense que tenho vindo, ora de manhã ora à tardinha, sempre que posso, maré vazia, cheia, enchente ou esvaziante, sol a pino, nascente ou poente, em busca da obra iluminada e que sei estar lá mas que não consigo ver, e dou por mim a pensar como é bom ter o dom da visão para observar este lindíssimo pôr-do-sol embora seja completamente cego para outras coisas... "Se consegues olhar, vê, se consegues ver, repara!", são palavras de Saramago às quais eu junto: se não consegues reparar apesar de ver, teima, se não consegues ver apesar de olhar, imagina! 

"Paimogo poente" - Jean-Charles Forgeronne

E assim, de peito feito chegarei a casa, terei as lambuzadelas do James à minha espera e depois de largar a roupa e os sapatos encharcados irei processar as fotos do dia, desilusão mais que anunciada mas que não impede que amanhã e depois e sempre lá volte, em busca do momento especial em que possa captar a obra integral, ainda que isso, não sendo pássaro, talvez seja impossível... 

  E por isso, àqueles que demandam a pequena enseada de Paimogo, que de um dia para o outro e viralmente se tornou instagramável, em busca de uma simples fotografia da obra para postar nas redes sociais, há que alertar: ou chegam de balão, ou levam um zangão atrás ou então é melhor irem pelo sol posto, ao menos poderão desfrutar de uma visão magnífica e não darem o tempo por perdido... Ou então ainda, levem toda a misticidade de Saramago convosco! 


João Plástico
(Artista de Valmedo)

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