segunda-feira, 28 de setembro de 2020

 

TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XI

PATANISCA NUMA TASCA LAROCA...

Não andam raposas pela Raposeira nem outros bichos selvagens, aliás pouca alma e pouco que ver se pode encontrar naquele pequeno lugar do concelho de Alcanena que tenta resistir ao despovoamento e ao abandono mas há uma excelente razão para demandar aquelas paragens: "O PATANISCA DOURADA",  uma casa que é muito mais que pasto, é um tesouro gastronómico que preserva e cultiva os pratos tradicionais da região... 


Não há cá luxos nem cerimónias que isso não casa com a maneira de ser das gentes humildes e trabalhadoras mas em compensação não falta aconchego nem simpatia na PATANISCA que nem precisa de ser dourada, é assim que é conhecido, apenas por Patanisca, e chega... É-se recebido pelas mulheres e donas da casa, a Dona Odete e a filha, Susana, ambas cozinheiras e ambas de conversa fácil, naquele dia também serviam as mesas porque a empregada estava de baixa...


Nem há um minuto sentado e chega-se a Susana perguntando o que ia ser, que havia isto e aquilo mas bastaram quinze segundos para me decidir ao ouvi-la dizer "Polvo à Patanisca", era um bom dia para polvo e enquanto esperava pelo cefalópode ia roendo umas azeitonas sem igual que me trouxeram à lembrança aquelas outras dos tempos de outrora em que a troco de dez escudos e com o meu canivete de estimação as retalhava com orgulhosa perícia, quatro golpes em cruz até ao caroço e sem cortar os dedos ainda moços... Depois, lançava-as para a barrica cheia de água e temperos, sal, oregãos e rodelas de laranja, e depois durante um mês ou mais lá ia a minha avó mudar a água todos os santos dias até ficarem prontas para ir para a mesa, tiravam-se à concha e depois temperava-se com azeite, alho e oregãos, tal como estas foram certamente porque têm o mesmo gosto, divinal... 




Mas o azeite, senhores, faz sempre a diferença e esta é terra de azeitonas e azeite ímpares paridos de oliveiras serranas e generosas, frutos de seculares tradições e enquanto olho para a estante que felizmente ficou mesmo à minha frente e reparo nos diplomas de participação em festivais de azeite e ervas aromáticas tudo faz então sentido, a Dona Odete, do alto das suas quase oito décadas de vida e experiência é um dos últimos bastiões da sabedoria gastronómica ancestral e bastaram umas azeitonas para o demonstrar... Claro que estes oregãos da Serra de Santo António e do sopé da Serra de Aire também contribuem e muito ou não fossem eles os melhores do mundo... 


Quando vem o polvo então sobe-me a pulsação, tal qual aquele que era feito pela minha avó e cozinhado em vinho tinto, quase desfazendo-se na boca e com aquele azeite único a ligar tudo, molusco, batatas e salada, delícia...  Falta dizer que o pão, o vinho e a sobremesa não desiludiram, mas as azeitonas e o polvo, ui! E depois, conversa entabulada, fica-se a saber que a ementa varia conforme o mercado e que às quartas-feiras é dia de prometedor cozido à portuguesa, que a quinta é dia sagrado da Dona Odete, a feijoada, que tanto pode ser a tradicional, a de peixe, a de polvo ou até de caracóis, depende, diz ela... E depois, a morcela e a cachola, essas iguaria da minha meninice e das matanças do porco e que por aqui ainda se comem, e parece que está para breve, portanto visita anunciada!


"O Alviela" - Dona Odete
E já de estômago e alma felizes e para final de conversa pergunto que pinturas são aquelas que enfeitam as paredes e que para além de nos transportarem para cenários idílicos nos revelam pinceladas de muita sensibilidade, ao que me responde a Susana. "Foi a minha mãe que os pintou... Agora já se deixou disso, diz que está velhota!". E entretanto vejo sair da cozinha a pintora, mancando mas de ar sereno e feliz, com mais uma travessa de polvo...  E feliz também saí dali eu, descendo a encosta para ir de encontro ao Alviela que serpenteava mansinho lá em baixo...
 

João Ratão
(Chef de Valmedo)

Sem comentários:

Enviar um comentário