sexta-feira, 17 de julho de 2020



A ABSTRACTA INTERPRETAÇÃO DA ARTE...


Foi por causa do panorama que se alcança da aldeia que decidi descer vagarosamente pela estreita e curvilínea Rua da Aroeira Trás das Eiras, nome que se à partida me soava curioso num ápice também se me tornou enigmático pois enquanto me fazia ao caminho não vislumbrava sinal de alguma aroeira nem sequer indícios de uma simples eira e ainda que tranquilamente admitindo erro grosseiro de observação ou análise deficiente de um botânico muito amador acabei por chegar confuso ao largo onde o poço medieval me aguardava, passada a simpática ponte da Rua de Trás do Paço e deixando ao largo a Azinhaga dos Linhóis, outra curiosidade toponímica porque nela não se enxerga à primeira vista qualquer vestígio do fio grosso usado para coser calçado ou lona, e aqui estou eu, encostado o mais que posso à vedação de madeira artificial para alcançar o melhor ângulo para desfrutar e fotografar a recente obra de  Filipa Morgado...


E ainda estava eu a habituar-me àquela esplendorosa luminosidade de uma invulgar manhã no MOLEDO  e a tentar encaixar-me o melhor que podia quando dos lados da formosa esquina formada pela Rua D. Fernando e pela Alameda D. Inês de Castro alguém surge em passo curto mas decidido, não era o infante, não era Dona Inês, não dava para perceber quem era e no final, já a disparar retratos para a obra, reparo que era uma curiosa senhora nem nova nem velha, desenvolta e de avental culinário posto, devia ter deixado as batatas e as couves do almoço a cozer, e ali estava ela, sem bom dia nem o que quer que seja, à minha beira, contemplando o mesmo que eu...  


Tentei concentrar-me na minha tarefa, dificultada pelos raios solares que me encadeavam os olhos e a objectiva mas a missão tornou-se impossível a partir do exacto momento em que ouço a criatura demasiado próxima lançar ao vento:
   - Bonito!
Nem olhei para o lado, tentei concentrar-me de novo no meu objectivo mas...
  - Muito bonito!  
Era demais, não podia continuar a fazer de conta e no último centésimo de segundo evitei dizer "Desculpe, está a falar comigo? Ou antes de tudo, bom dia que também se deve usar por aqui, ou não?"... Olhei então para o lado e a criatura continuava tipo moai a olhar em frente...
   -É bonito mas gostava de entender, isto é só para pessoas com estudos... - disse ela em modo de desabafo, impassível, olhando sempre em frente como se eu não existisse sequer...


"Está mesmo a falar comigo?", interroguei-me, e por móbil desconhecido que ainda hoje ignoro desato a perorar:
   - Sabe, eu acho que a artista usou esta parede para juntar os dois mundos, o mundo natural, o físico, o palpável e o outro, o da psique, o dos sonhos, da religião, do além... Repare, na parte de baixo estão plantas, aves, natureza, em cima está o campanário daquela igreja ali, mãos em prece, olhos, vultos, corações, e tudo separado por aquelas maravilhosas janelas que parecem feitas para nós espreitarmos o outro mundo enquanto do além nos observam a nós!
E um segundo depois de ter pensado um pouco sobre aquilo que tinha acabado de lançar pela boca fora tive vontade de pegar em mim e desaparecer, voltaria noutra melhor altura, mas fui salvo quando vi pelo canto do olho a criatura dizer de cabeça aquiescente:
  - Bonito! Isto é mesmo para quem tem estudos...
 E sem mais, como veio assim deu meia volta e desapareceu na esquina, decerto rumo à panela que estaria a precisar de tempero e agitação... 
O alívio que senti permaneceu durante um par de horas até chegar a casa e actualizar as redes sociais: o João Leirão tinha publicado com fotos e tudo a obra da Filipa, uma obra sobre o AMOR, dizia ele... Qual amor? Não vi nenhum amor ali! Para mim era o mundo natural versus o mundo supra! Que raio? Que iria agora dizer aquela estranha criatura que com reverência tinha dito que a arte era para pessoas com estudos? Bem, agora só me ocorreria dizer: "A arte não é para quem tem estudos, é para quem sabe observar! É uma questão de olhar e conseguir ver!". 


João Plástico

(Artista de Valmedo)

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