QUANDO O NOVO INCOMODA O VELHO...
Depois da saudação em inglês, o recepcionista do hotel em GENT, ainda moço e de ar simpático, pediu a nossa identificação:
- Your name, please?
- João...
- João? Good name!
E eu, que por breves instantes espreitara o célebre GRAVENSTEEN, a imponente casa acastelada outrora morada dos Duques da Flandres e que se vislumbrava do outro lado da rua com um ar ainda mais imponente do que aquele exibido pela foto do guia turístico, virei-me e encarei o jovem com um semblante que exigia mais explicações:
- Yes, I like it too...
- Where do you come from?
- Portugal...
- Oh! And I am brazilien!
- Então talvez possamos falar português, não?
E desatamos todos à gargalhada...
![]() |
"Gravensteen" - Gent |
E a língua aproximou dois continentes naquela terra de fala estranha, o HEITOR tinha vindo com meses de idade do Pará para a Bélgica, é estudante de direito e vai ganhando uns euros como recepcionista... E sim senhor, para além do francês dominava bem o flamengo, mas foi em português sorridente que nos ofereceu um mapa da cidade com os locais mais importantes para visitar e, mais importante, se disponibilizou para ajudar no check-in aéreo que teríamos de fazer na manhã seguinte. E claro, conhecia o Benfica e era adepto do Flamengo...
![]() |
"Stadshal" - GENT |
- Ó Heitor, importas-te de assinalar aqui onde fica o Amadeus, sabes, aquele famoso restaurante das costoletinhas? Conheces?
- Claro, toda a gente conhece, mas qual deles? Há dois! - e assinalou no mapa a localização do velho, o original, e do novo... - Se não conseguirem mesa neste aqui, que é o mais antigo e que muitas vezes está cheio, tentem neste aqui, mesmo no centro histórico, não tem nada que enganar, fica por detrás de uma coisa muito esquisita que vão encontrar no centro da praça, uma casa inacabada que só tem telhado...
- Não me digas que o construtor foi à falência!? Isso é mais típico de Portugal!
- O arquitecto passou muito mal, foi muito criticado e quase ninguém achava muita piada àquela coisa esquisita ali junto aos monumentos e a coisa ficou assim, até hoje, por acabar. A gente chama-lhe o curral de ovelhas porque parece um celeiro...
E depois de ir ao céu com as costoletinhas do Amadeus era obrigatório ir ver aquela coisa estranha e uma coisa é aquilo que se fala, outra é aquilo que se ouve, outra ainda aquilo que se entende e que podem todas não coincidir com a coisa real e enquanto caminhávamos pela beira-rio íamos imaginando como seria aquele casa tão esquisita que ainda só existia para nós pela boca do Heitor e estranhava eu porque ainda não tinham então demolido aquilo... E de facto, e de todos os ângulos de vista, a construção é um pouco estranha à primeira vista mas naquele anoitecer foi muito útil porque nos safou de uma boa molha e serviu também de refúgio e palco para actividades de praxe de um grupo de universitários...
E quando lá voltamos na manhã seguinte, a estranha construção já nos pareceu menos bizarra, até engraçada e depois aquele edifício inacabado tornou-se uma coisa bem interessante depois de saber a sua história oficial, que reza assim:
O STADSHAL, que se pode traduzir por "pavilhão da cidade", é uma estrutura maciça de aço e madeira que foi construída entre 2010 e 2012 e ao contrário do que pensa o Heitor e muitos outros não está por acabar... É obra de uns célebres arquitectos flamengos que também já tinham provocado muita celeuma com a construção da Sala de Concertos de Brugges e mede 40 metros de comprimento por 20 de altura, com um tecto de madeira onde foram abertas 1600 pequenas janelas que proporcionam um interessante jogo de luzes diurnas e nocturnas, e tudo sustentado por grossos pilares. E claro, não tem paredes... E enquanto cá em cima, o "salão" tanto alberga o mercado semanal como espectáculos ou outras actividades, no piso subterrâneo existem estacionamento para 200 bicicletas, instalações sanitárias, exposições e uma brasserie...
E a polémica arrasta-se vai para vinte anos, metade gosta e metade odeia, ainda hoje muitos não se conformam com a existência daquela "anormalidade" e até a Unesco se meteu ao barulho porque entendia que um projecto tão moderno não encaixaria bem no ambiente histórico de Gent, a eterna luta entre o novo e o velho... E eu, que não irei ao Parlamento flamengo votar a favor ou contra a demolição mas que tive a sorte de admirar a construção maldita e toda aquela encantadora praça, com o campanário logo atrás, gosto! E acho que quanto mais se passa por lá mais se fica a gostar e não me importaria nada de lá regressar um dia para as festas da cidade que, curiosamente, decorrem ali mesmo!
João Palmilha
(Viajante de Valmedo)
Sem comentários:
Enviar um comentário