sábado, 18 de março de 2017



EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO -  VI


Quando chegavam as férias grandes e o Verão mudava-se de vida, mais de três meses de um tempo sem amarras nem constrangimentos, apenas umas 90 cópias e umas 50 redacções para apresentar no longínquo primeiro dia de aulas e o resto era uma temporada de liberdade e brincadeira que ainda hoje deixa saudades....



   Um genuíno kit de sobrevivência daqueles verões ribatejanos deveria incluir, obrigatoriamente, as pistolas, usadas nas cowboyadas, a fisga, fundamental para a caça e torneios de pontaria, o canivete de estimação que desenrascava nas situações mais aflitivas e insólitas, o baralho de cartas que ditava a sorte nos jogos de casino e a banda desenhada que alimentava o culto dos heróis.... 



O calor podia asfixiar, o relógio empancar de tanta lentidão ou até a consciência emperrar devido à languidez típica da época mas. ainda assim, havia sempre lugar à reunião dos espíritos libertários em assembleia geral onde se decidia quais as actividades relevantes para a época, fosse a expedição às Grutas do Almonda ou aos Penedos da Nogueira.... 

E depois chegava o tempo da máquina....



A MÁQUINA

A noticia chegava depressa, a "máquina" tinha chegado às Cabeças! E a partir daí era um corrupio de tractores e galeras e carroças carregadas de cereal para a debulha! E quem, nesse breve mas intenso percurso até ao Caramulo conseguia andar pendurado por mais tempo nessas geringonças, muitas vezes em frágeis equilíbrios, seria um herói por gerações....! E  mesmo que a pistola comprada na Feira de Março ficasse infortunadamente esquecida em casa havia sempre uma saída, qualquer pau bifurcado desenrascava a ocasião e depois, por entre as centenas de fardos de palha empilhados, corredores e túneis a perder de vista, jogava-se às emboscadas, eternas aventuras de cowboys que só os mais audazes dominavam.... E entretanto, a  máquina dava emprego a muita gente, desde os operadores da máquina aos processadores do arame (esticanço, corte e preparação para o enfardamento).... Não durava mais do que um mês mas a máquina era o acontecimento do verão.....


A mina
Mas o calor abrasador do Ribatejo pedia mais, fosse apenas um refrescanço ou uma avassaladora prova de coragem.... Não havia piscinas por perto mas qualquer poço ou represa servia... Chegávamos a fazer quilómetros a pé por entre fazendas para mergulhar e aprender a nadar nos melhores tanques e minas... Eu até era um privilegiado, o vizinho Tónito leváva-me com ele à mina do avô Marques e aí era um deslumbramento.... a água brotando da nascente e enchendo o tanque de puras e frescas ondulações.... Não sabe o Tónito nem ninguém que. para além das visitas combinadas, muitas outras vezes fui à mina, às escondidas, mergulhar e treinar o crawl.....  
A mina não resistiu ao tempo e ao abandono e só se pode imaginar o tanque de água pura e fresca por debaixo de silvas com décadas de existência, até a nespereira que havia logo ali ao lado e que para além do lanche nos oferecia uma bela sombra já não existe, apenas se mantém inalterada a vista para a fábrica da Nogueira e para os Penedos lá mais ao longe, uma cordilheira de rochas abruptas que acredito ser onde acaba o manto sul da Serra de Aire e onde também ia a malta ocasionalmente praticar uma espécie de alpinismo...


E depois, nos entretantos do estio, a malta encontrava-se depois da sesta obrigatoria ao final da tarde, no adro da igreja para jogar às cartas, bisca, sueca ou lerpa, fosse o que fosse, desde que desse para ganhar alguma coisa, uns escudos ou uns rebuçados....!


E depois, de vez em quando, uma excursão de bicicleta aos Olhos de Água, a nascente do Alviela, maravilhosa aventura ciclista que até hoje perdura na memória....



Olhos de água


J.C

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