EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO - V
Quando as andorinhas traziam a Primavera, abriam-se as casas à luz e crescia o verde dos campos, o sol despertava a sede de aventura e havia uma sinfonia constante pelos ares, os pássaros alegravam a existência... VERDILHÃO, TENTILHÃO, TOUTINEGRA, PINTASSILGO, MELRO, PARDAL, ROLA BRAVA... era obrigatório conhecê-los a todos pela plumagem e pelo canto e não havia por aqueles dias melhor motivo de conversa para apresentar na escola do que o ninho descoberto de véspera, evidentemente identificado pelo tamanho e coloração dos ovos... Era tempo de arranjar uma nova FISGA!
FORCA, ELÁSTICOS, CABEDAL e GUITA, eram os materiais necessários para a construção de uma fisga, esse mágico e intemporal artefacto que nos acompanhava em todas as aventuras, fosse uma expedição de caça à passarada, um torneio de pontaria a alvos improvisados ou uma simples volta de reconhecimento pela natureza selvagem... A fisga era uma extensão do nosso corpo, sem ela sentia-mo-nos nus, deslocados, quais cowboys sem pistola nem alento...
Tudo começava com uma volta pelos campos em busca da forca ideal, tinha que ser um Y perfeito, o punho grosso e resistente e as hastes do mesmo diâmetro e direitas, obviamente de madeira ancestral e sagrada da nobre oliveira... Depois era necessário achar nos desperdícios da oficina de motorizadas um bom pedaço de câmara-de-ar em bom estado e do qual fosse possível retirar à tesourada dois compridos e resistentes elásticos! Seguidamente havia que ir ao Luís Sapateiro, não para tirar as habituais medidas para uns novos sapatos ou para aqueles fantásticos botins que duravam uma década (sola grossa e protegida com brochas e protectores) mas sim para pedir um naco de cabedal com a qual se fazia a malha, a peça que envolvia o projéctil... E pronto, ligava-se tudo muito bem com guita de qualidade e aí estava a fisga pronta para infindáveis e perigosos lançamentos...
Canivete, pistola e fisga com projécteis |
O kit de sobrevivência daqueles tempos incluía ainda o canivete e a pistola de plástico comprada na Feira de Março para jogar aos índios e cowboys, mas se por acaso ela se perdia ou ficava esquecida em casa não havia drama, de qualquer pau bifurcado se fazia uma 45 Long Colt...
A Primavera também trazia o jogo da bola de volta, o campo já não era lago nem lamaçal e eu, com a antecedência devida, lá ia para o local de encontro e paragem obrigatória depois de um dia de trabalho, a oficina do Fazenda... E enquanto ele, de bata azul miraculosamente apresentável e por entre peças embebidas em óleo e marteladas no torno, voltava a montar os motores desmanchados ou afinava travões, eu, sentado num toco de madeira que servia de banco, ia devorando as páginas a preto e branco de "A BOLA" que ele religiosamente ia sempre buscar à vila manhãzinha cedo...
A conta gotas ia chegando a malta mais velha da jornada de trabalho, vinham da Renova, da Nogueira e das fábricas de curtumes de Alcanena e Gouxaria, estacionavam as suas FAMEL, ZUNDAPP e SACHS V5 e após uma boa meia hora de descontracção e de espera e que a mim me parecia uma eternidade, reunida a gente suficiente lá pegávamos na bola e íamos até ao campo maltratá-la...
Não era necessário equipamento nem botas de futebol, era mesmo com a farda de trabalho e sapatos ordinários mas resistentes que se disputava a contenda, as canelas sofriam que se fartavam porque ali todos jogavam, com ou sem jeito para a coisa era uma festa, equipas escolhidas pelos mais velhos e eu, benjamim e franzino mas com alguma habilidade, lutava até à exaustão e enquanto ia ouvindo raspanetes e conselhos dos mais velhos, aprendendo a responder às provocações e aos desafios, chegava já noitinha a casa estafado mas um pouco mais crescido... E quantos pares de sapatos foram destruídos naqueles fins de tarde?
Dantes todo o lugarejo que se prezasse tinha um campo de futebol, uns maiores e outros minúsculos porque não havia terreno baldio para mais e outros ainda tão inclinados e irregulares que tornavam o jogo numa perícia de equilíbrio e lotaria, não havia maneira de saber às vezes para onde a bola iria depois de bater no solo esburacado.... E depois vinha o acontecimento mais esperado do ano futebolístico: o jogo SOLTEIROS-CASADOS, quem perdesse pagava o petisco e era achincalhado até ano vindouro! Cinquentões de barriga proeminente que não jogavam desde o ano anterior, desajeitados que nem sabiam com que pé chutar, jogadores da bola na posse máxima das suas faculdades e miúdos sonhadores, tudo misturado e a festa acontecia... Era dia de todas as famílias irem ver a bola, observar os maridos, pais e filhos a correr até à exaustão por uma questão de honra, nunca o casamento ou a ausência dele teve tanta importância neste país! E ainda me lembro do nervoso que estava quando vesti pela primeira vez o equipamento azul e branco representativo da terra e do orgulho que senti quando entrei com ele em campo para arrasar com os casados... Foi a minha primeira grande conquista, ganhámos, marquei até um golinho e não tive que partir o mealheiro para arranjar os 50 escudos para pagar a sardinhada... E só por ter sido então feliz é que me recordo daqueles dias... Entretanto os tempos mudaram e hoje não deve haver um único campo da bola por essas aldeias fora do interior que esteja utilizável a não ser para pastoreio, o abandono é doloroso e a ferrugem das balizas acarreta a nostalgia de fins de tarde felizes e de domingos soalheiros e festivos, afinal hoje joga-se mais na playstation....
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