EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO - IV
Naqueles tempos as estações do ano eram regulares, começavam no dia esperado e acabavam no dia certo, por exemplo, no Inverno chovia quase constantemente e a temperatura não sofria tantas e tamanhas oscilações como acontece actualmente em que não sabemos o que podemos vestir amanhã. Quando chegava a época do frio e da chuva era para durar até ao fim e o chapéu-de-chuva e os agasalhos só seriam arrumados quando as andorinhas traziam a Primavera, e o mesmo acontecia com as outras estações, quando acabavam era em definitivo, sabíamos com o que contar... De meados de Novembro até Março fazia frio de rachar no Ribatejo interior e chovia tão a sério que era água por todo o lado, os poços enchiam até cima, os ribeiros renasciam e transformavam-se em rios, o Almonda chegava ao cimo das pontes e o Alviela transbordava que mais parecia um mar...
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Braseira |
O frio e a chuva não interferiam apenas com a paisagem, a actividade agrícola ou com a disponibilidade da comunidade, também limitavam muito as inspiradas actividades lúdicas da malta nova, era então tempo de um maior recolhimento e de menos brincadeiras ao ar livre...
Mesmo assim, ainda que sujeitos ao rigor invernal, havia lugar a actividades diárias estimulantes como aquela de, já lusco-fusco, calcorrear três quilómetros de ida e outros tantos de volta desde casa até à fábrica da Nogueira, parceria de azeites e bastante activa na época, para encher até cima o balde de alumínio com o miraculoso BORRALHO (cinzas do aquecimento das caldeiras) e que, depois de depositado na BRASEIRA, convenientemente encaixada no estrado de madeira, bem no centro da cozinha ou da sala, aquecia o lar até à manhã seguinte.... Isto claro quando não ia dormir a casa da avó, onde havia uma lareira enorme, lenha a arder e eu, sentado lá em cima num banquinho de madeira feito à medida, mirando os mirabolantes efeitos das labaredas e ouvindo com sofreguidão da boca das velhas histórias encantadas de moiras e lobisomens, tudo real e assustador.... E tudo acabava com o ir para a cama na companhia da botija de água bem quentinha debaixo dos pés e não sei quantos cobertores por cima...
E depois havia o BARREIRO... uma mítica e quase insignificante depressão geológica de pouco mais de um metro e meio de profundidade, encostado ao fontanário público e por detrás de uma das balizas do campo da bola, mas que enchia após tristes semanas de chuva avassaladora e se transformava num imenso lago... Era então tempo de construir uma jangada de madeira roubada ao serralheiro e partir à heróica conquista de mares nunca dantes navegados, tal qual VICKIE, o jovem herói VIKING...
Mesmo assim, ainda que sujeitos ao rigor invernal, havia lugar a actividades diárias estimulantes como aquela de, já lusco-fusco, calcorrear três quilómetros de ida e outros tantos de volta desde casa até à fábrica da Nogueira, parceria de azeites e bastante activa na época, para encher até cima o balde de alumínio com o miraculoso BORRALHO (cinzas do aquecimento das caldeiras) e que, depois de depositado na BRASEIRA, convenientemente encaixada no estrado de madeira, bem no centro da cozinha ou da sala, aquecia o lar até à manhã seguinte.... Isto claro quando não ia dormir a casa da avó, onde havia uma lareira enorme, lenha a arder e eu, sentado lá em cima num banquinho de madeira feito à medida, mirando os mirabolantes efeitos das labaredas e ouvindo com sofreguidão da boca das velhas histórias encantadas de moiras e lobisomens, tudo real e assustador.... E tudo acabava com o ir para a cama na companhia da botija de água bem quentinha debaixo dos pés e não sei quantos cobertores por cima...
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A botija de água quente |
E depois, nos tempos mais frios, quando o barreiro gelava, qual Pólo Norte que tivesse descido até nós, era tempo da brincadeira mais estúpida de que me lembro... quem conseguiria avançar mais naquele manto de gelo seria considerado o herói de inverno! O problema era que o manto, sem ninguém saber onde, de repente dava origem a uma fina película de gelo que desabava sob o peso dos intrépidos aventureiros e.... herói ao fundo, molhado e gelado, feito um pingo e alvo de troça nos tempos mais próximos...
Valia que eu era um privilegiado, a tia Olinda, para além de morar ali perto, calhava ter o forno aceso para a cozedura semanal do pão e não uma, mas pelo menos duas vezes me salvou a vida... roupa a secar junto ao fogo e uma merendeira a fumegar, acabada de sair e recheada com açúcar e azeite, para levantar o ânimo....
J.C
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