EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO - III
A febre do BILAS atacou ainda frequentava eu a primária e por entre toneladas de cópias, redacções e tabuadas lá se arranjava sempre tempo para jogar ao mata e tentar ganhar alguns berlindes, fosse no recreio da escola, no fim das aulas, no caminho para casa ou numa simples ida à mercearia para aviar encomenda.... Andávamos todos com a bolsa de pano dos berlindes na pasta da escola, por entre lápis, borracha, cadernos, caneta, tinteiro e o mata-borrão, e
mesmo quando não era tempo de escola lá transportávamos o nosso exército pronto para a batalha, espaço não era problema, em qualquer palmo de terra se faziam os buracos e se houvesse competência para a pontaria então poderíamos aumentar a nossa colecção. E se não fosse dia de sorte então a grande prioridade do dia seguinte era recuperar a quantidade de berlindes perdidos!
3 palmos e mata |
Quatro buracos em circuito, dos quais o mais importante era o caguinchas, se caíssemos lá antes de tempo, por azar ou por berlindada de algum adversário, éramos obrigados a reiniciar tudo do princípio e palmo conquistado a cada buraco ultrapassado chegava-se à fase mais decisiva: o mata, se então acertássemos nos berlindes adversários eles passariam para a nossa posse, prémio justo para tanto esforço... E se por malfadada sorte ficássemos quase sem berlindes havia sempre a salvação numa garrafa de PIROLITO, essa gasosa ancestral que valia mais pelo bilas que oferecia do que pelo limão gaseificado, muitas garrafas serviram de alvo no delicado treino de pontaria com a fisga, havia que parti-las para ficar com a esfera de vidro milagrosa...
Contemporâneo das nossas brincadeiras com o berlinde era o clássico PIÃO, esse simples e desafiante artefacto que recebi de presente num Natal em que o Menino Jesus desceu pela lareira e o botou lá numa meia... Lembrança e linguagem de avó que quando tinha nascido na primeira década do século já se brincava ao pião e pasmado ficaria eu muitos anos mais tarde quando descobri que, afinal, o pião não vinha do tempo dos pais nem dos avós mas antes era uma das mais sérias e antigas brincadeiras da humanidade...
Exemplar com 42 anos, bico ferrugento mas operacional |
De facto, parece que está em exposição no MUSEU BRITÂNICO o exemplar mais antigo do mundo, achado no Egipto e datado de 1250 a.C... Também consta que o lançamento do pião na antiguidade fazia parte de rituais de adivinhação e xamanismo, ou seja, era uma porta aberta para auscultar os humores e as intenções dos deuses...
Pião enrolado e pronto para o lançamento |
E nós, na nossa infinita inocência, só tínhamos olhos para o bom enrolanço do cordel, para o gesto que parecia simples de lançar o pião mas que tinha o seu quê de instinto e aptidão natural, e era maravilhoso quando conseguíamos pôr a girar e a girar o pião, infinitamente, como se a geometria e estabilidade do eixo do mundo estivesse dependente daquele movimento... E depois, sem o saber, nós, iniciados numa tradição milenar e depois de ultrapassados os primeiros obstáculos, encarávamos de peito aberto e com muito treino os mirabolantes desafios que era necessário ultrapassar para almejar o título de Grande Mestre do Pião, já não bastava lançar o pião e ele rodar, seria também necessário chegar ao último nível de perícia, lança-lo por detrás das costas e conseguir colocá-lo a rodar na palma da mão!...
O jogo do RAPA já não era um jogo de perícia masculina, as meninas já podiam entrar e não passava de um jogo de sorte ou azar....Jogavam-se uns piõezinhos de madeira ou plástico, de quatro faces, R T P D....
Rapa tudo, tira um, põe um ou deixa tudo como está.... e jogava-se ao rebuçado, claro.... Não deixava de ser uma bom passatempo mas não era a mesma coisa....
Pião do rapa |
Mas juntamente com o jogo do lenço, com o jogo do toca ou o do mata, nos quais a velocidade e os reflexos eram postos à prova, o pião e o berlinde foram reis nos recreios da primária....
J.C
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