quinta-feira, 1 de junho de 2023

 

O AUTORETRATO DO POETA!


De seu pomposo e inteiro nome Manuel Maria l'Hedoux Barbosa du Bocage, o Bocage, como era tratado pelo povo, é considerado por muitos um dos maiores poetas líricos portugueses de sempre... Embora tivesse sido um genial sonetista a sua fama popular adveio dos seus versos ora satíricos ora eróticos, alguns mesmo considerados pornográficos e que circulavam de mão em mão em edições clandestinas, de resto o poeta apenas publicou oficialmente os três volumes das suas "Rimas" desde 1791 a 1804. 
Em agradecimento ao primoroso desempenho com que Henrique José da Silva o retratou pela última vez em vida, corria 1805, o ano da morte do poeta devido a um aneurisma, Bocage, talvez num mero intervalo entre poses estudadas, escreve mais um soneto em que irmana a poesia e a pintura... O retrato mostra-o no seu ambiente natural, rodeado de livros, com um tinteiro e respectiva pena à mão de semear e diversas folhas de papel sendo que o poeta aponta para uma delas onde se pode ler o último terceto do soneto: 

"Honra Elmano o pincel, e o plectro Henrino:
compete aos vates dois, aos dois pintores,
correr na eternidade igual destino." 



Sempre Bocage se sentiu incompreendido e perseguido por uma sociedade portuguesa tradicional e bolorenta, avessa a novas ideias e tentou fugir dessa opressão em viagens pela Índia, Brasil e Macau, aventuras que no entanto não lhe apaziguaram nem a infelicidade no amor, nem as frustrações, nem o desespero... Refugiado numa intensa boémia e já expulso dos círculos literários acabaria por ser preso em 1797 por desrespeito à rainha e à Igreja! Para escapar ao cárcere é obrigado a retratar-se e na parte final da sua curta vida sustenta-se a si e a uma irmã com quem vive a fazer traduções miseravelmente pagas de poetas franceses e clássicos latinos como Virgílio ou Ovídio, tarefa que aliás executou com rigor e originalidade, ou não fosse alguém obcecado com a perfeição... Bocage, como muitos outros grandes génios incompreendidos, morreu na doença e na miséria aos 40 anos de idade e foi, sem dúvida, um irrequieto espírito fora da sua época...     


COMO O POETA SE RETRATA

Magro de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;

Devoto incensador de mil deidades
(Digo de moças mil) num só momento,
Inimigo de hipócritas e de frades;

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou cagando ao vento.


Não se equivoque o prezado leitor se ao abrir um livro de sonetos de Bocage der de caras com outra coisa que não esta maravilha, é que o seu autoretrato original seria depois revisto e alterado devido à perseguição inquisitorial de que era alvo e os versos onze e catorze tomaram depois a seguinte ambígua e amorfa forma:

11 - "E somente no altar amando os frades"

14 - ""Num dia em que se achou mais pachorrento"

Claro que, sempre e especialmente nos dias que correm em que já não há pachorra e em que Bocage se estaria cagando para muito deste mundo-cão, o poeta preferiria a versão pura e original, afinal é essa a alma de toda a sua poesia...



J.C

(Poeta de Valmedo)


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