domingo, 4 de junho de 2023

 

CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - XLIII


AS ANEDOTAS DO FAMOSO PECAIS


Decididamente não é por falar que a gente se entende pois nunca foi, não é e nunca será simples e fácil entendermo-nos uns aos outros através da fala mesmo que falemos a mesma língua! Agora que solenemente anunciei esta conclusão fantástica a que cheguei depois de muito ter falado e de muito ter ouvido, muitas vezes sem me ter feito compreender e outras sem ter entendido patavina do que ouvia, passo à justificação: a linguagem sonora é o pináculo da confusão!
E tudo começa mesmo antes de qualquer som articulado nos sair da boca para fora quando o nosso cérebro, em menos tempo que o diabo se esfregou e numa catadupa de reacções neuronais, descodifica o caos que é uma língua começando na fonética e na fonologia, passando pela sintaxe e acabando na semântica... Depois vem a parte física da questão, a linguagem sonora e qualquer simples fonema que seja resulta da passagem do ar através do aparelho fonador, culminando nas funções sincronizadas dos seguintes orgãos: pulmões, brônquios, traqueia, diafragma, laringe (cordas vocais), faringe, nariz, dentes, palato, língua e lábios... É obra! E é caso para dizer que basta a língua se enrolar um pouco mais do que o devido, a falta de um dente, um ronco que não era suposto ou o nariz entupido e corremos grande risco de ninguém perceber os sons que fazemos!  Cuidado pois com as manhas da linguagem, devido a elas podemos andar enganados quase uma vida inteira, foi o que me aconteceu nos saudosos anos 70, era eu menino e moço e um dia oiço a seguinte pergunta vinda de uma das aprendizes de costura que estagiavam no atelier da minha mãe:
 - Queres ouvir uma anedota do Pecais?
 - Claro, conta lá! - disse eu prontamente, a precisar de anedotas para botar figura no recreio da escola...
E ela contou, achei piada e ela contou outra e outra...
 - Mas quem é esse Pecais? - perguntei intrigado pela estranheza do nome, a única vez que tinha ouvido a palavra "pecais" tinha sido na igreja e onde o padre da aldeia que assobiava os esses se tinha despedido da comunidade com um "Ide em paizee e não pecaissss"...
 - É uma pessoa que escreve coisas, existe mesmo lá para Lisboa, não é como o menino Carlinhos que é invenção... 



Mais tarde descobri que o tal Pecais era mesmo famoso, não havia ninguém que o não conhecesse e que não tivesse uma anedota dele para contar, até que um dia tratando eu dos recados na mercearia do Fernando vejo um dos fregueses a estender--lhe uma nota enquanto dizia: "Toma lá um Pecais e dá-me lá o troco!". Ainda fui a tempo de notar que era de uma nota de cem escudos que se tratava, coisa que raramente me passava pelas mãos mas não descansei enquanto não cheguei a casa e pedi alvoroçado para que alguém me mostrasse uma nota de cem porque estava lá o Pecais famoso das anedotas... E lá estava de facto o Bocage!  E nunca ninguém reparou que para mim Bocage sempre fora o Pecais, porque assim o tinha ouvido e percebido, afinal que culpa tinha o homem de ter herdado aquele estranho apelido de uma dama francesa?


João Portugal

(Línguista deValmedo)

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