quinta-feira, 2 de abril de 2020



FLAMENGOS, PORTUGUESES E MARRANOS...


Se o meu comboio vinha cheio e se todos os outros que vejo chegar também vêem a abarrotar então não surpreende que as ruas de ANTUÉRPIA estejam fervilhantes de gente, especialmente neste quilómetro e meio de larga avenida pedonal que vai desde a estação até ao centro histórico, são famílias inteiras com cão incluído, grupos de malta nova a pigarrear com energia e alto volume aquela língua que me soa estranhíssima porque contêm muitos "erres" e trejeitos de boca, magotes de pares de donzelas carregando sacos de compras numa mão enquanto que com a outra vão apontando para as montras mais um possível investimento, o burburinho da multidão que avança devagar só é abafado por música que se ouve ao longe e então, tal qual nos filmes, no derradeiro instante do último segundo consigo desviar-me sem elegância e com atrapalhação de uma apressada e elegante ciclista que ainda teve tempo de me lançar um olhar que deveria conter três ou quatro elogiosos termos flamengos tipo dom, gek ou outros ainda mais simpáticos que ainda não aprendi... E apesar de só a ter visto de relance reconheci de imediato aquela mesma jovem que tinha dobrado a bicicleta à minha frente no comboio e enquanto eu abria os braços para pedir explicações já ela desaparecia ao fundo. E ali fiquei especado um par de minutos, pensando se o incidente teria sido uma mera coincidência ou se faria parte de uma conspiração para me eliminar até que, com embaraço, conclui que se tivesse sido abalroado a culpa seria minha porque só então notei eu que já vinha há muito caminhando distraído numa ciclovia berrantemente pintada de vermelho e só me restou chamar a mim próprio em voz alta e traduzido em bom português o que a moça me tinha dito com o olhar, estúpido, maluco e outras coisas que não devo dizer aqui!


Desfile de rua

E a meio da MEIERSTRASS, que traduzido do flamenco significa "a rua mais importante" (meir -maior; strass - rua) e que ganha evidente lógica porque é aí que se concentra o comércio do centro da De Metropool, ou seja, a metrópole, como assim gostam de chamar à sua cidade os sinjoren, assim auto-intitulados os habitantes de Antuérpia a partir do respeitoso tratamento senõr atribuído aos nobres espanhóis que governaram a cidade durante o século XVII, desfaz-se o enigma da origem daquela música de fundo que há muito tempo me chegava aos ouvidos: era um desfile de moda improvisado em plena rua! E tudo ganhou sentido então, para além do monopólio dos diamantes e de ter um dos maiores portos do mundo Antuérpia é também conhecida desde os anos 80 por albergar conceituados designers e por ser hoje em dia um dos pólos da moda mundial...


"Grote Markt", a praça central...

Desfile terminado, entre aplausos e agradecimentos, avanço para o verdadeiro centro histórico e de impulso tomo como atalho uma rua mais tranquila, mais espaçosa e com menos turba, pináculos da Onze-Lieve-Vrouwekathedraal à vista, ou seja, a Catedral da Nossa Senhora para quem obviamente não percebeu nada, ou seja ainda, a Notre-Dame lá do sítio, quando, qual trombeta soando dos céus, ouço um dueto de corações apaixonados declamando juras de amor na língua de Camões, esperava eu tudo menos encontrar amantes lusitanos entrelaçados num  meloso weekend  à portuguesa a milhares de quilómetros de distância da pátria de Damião de Góis...
Mas depois, passado o espanto, relembro as palavras de Ramalho de Ortigão em "As Farpas":

"Em Antuérpia e em Bruges honrosos documentos lembram ainda numerosos e ilustres portugueses que aí residiram, uns como nossos feitores em Antuérpia, outros como representantes da sua família e da sua pátria junto da duquesa Isabel, em Bruges."


"Isabel de Portugal, Duquesa de Borgonha e da Flandres" - Van Eyck

E de facto, se os portugueses contribuíram inicial e decisivamente para o desenvolvimento económico de ANTUÉRPIA isso o devem a Dona Isabel, única filha de D. João I e Filipa de Lencastre e que sendo ínclitamente casada com o duque da Borgonha e da Flandres usou da sua diplomacia para se tornar um influente pilar nos negócios lusitanos pela Flandres, de tal forma que ficou conhecida como "A Grande Dama"...
Então os comerciantes portugueses foram especialmente privilegiados em todos os negócios, decretaram-se feitorias em Bruges e depois em Antuérpia de tal forma que os negociantes portugueses por essa altura aí detinham 112 casas de comércio!, Mas El-Rei D. Manuel, o tal venturoso ou bronco, depende da perspectiva, sabe-se lá e escolha-se, apesar de ter nas suas mãos o monopólio das indianas especiarias, pimenta, açafrão, gengibre ou canela, lembro-me agora, trata de enviar para a Feitoria Portuguesa da Flandres tudo aquilo que vinha das Índias, nem sequer a mercadoria era desembarcada em Lisboa, ala que se faz tarde! Em troca recebia tecidos, pratas e outras quinquilharias para adornar palácios e calar os nobres corruptos da corte.... Não satisfeito ainda consegue, o venturoso, tomar a medida mais estúpida da história da humanidade, lusitana e não só, porque refém da maldita igreja católica decidiu expulsar os  nossos judeus de Portugal, os MARRANOS, eles que eram talvez os únicos incorruptos duma sociedade suja e que tinham o método, a disciplina e a esperteza no comércio e negócio.... O certo é que esses mesmos judeus de origem portuguesa incrementaram por Antuérpia o negócio dos diamantes, o negócio das especiarias e o negócio de tudo o que vinha das Índias descobertas por um tal Vasco da Gama... Não me admira, portanto, que se fale ainda tanto português pela Flandres... E entretanto, Portugal vem definhando desde então às mãos de imbecis e corruptos, desde que se esgotou o ouro do Brasil....




João Alembradura
(Historiador de Valmedo)

1 comentário:

  1. Muito interessante, sucinto o suficiente para pincelar uma época da nossa história...

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