domingo, 13 de maio de 2018



EFEMÉRIDE # 47


A CARRINHA DOS LIVROS


Verão de 1974

É mais uma tarde de canícula típica do Verão ribatejano. À sombra, encostados à parede do lagar de azeite do Sousa, éramos para aí uma dúzia, quais irmãos Dalton, desde os mais gaiatos como eu, de dez e onze anos, aos mais crescidos, de quinze e dezasseis, estes já com uma penugem no buço que lhes conferia autoridade e primazia na escolha, a prioridade pela ordem de chegada apenas era válida entre os da mesma idade, coisas típicas de uma sociedade juvenil hierarquizada... Éramos os que líamos na aldeia, todos rapazes porque naquele tempo as meninas não brincavam na rua e era-lhes proibido conviver connosco fora da escola, e o facto de nós, os mais novos, pertencermos a esse grupo enchia-nos de orgulho e presunção junto dos outros que, não lendo, apartavam-se das discussões sobre as aventuras que então cada um tinha vivido a partir daquelas páginas e que relatava em acesas palestras quando a malta se reunia, medindo heróis e façanhas.



Então alguém gritava: - "Já lá vem a carrinha!".
E era um alvoroço, todos levantados, olhar fixo e ansioso na curva ao longe e então, a pouco e pouco, aflorava à vista a forma e a cor características da Citroen, roncando e cansada da exigente subida que vinha do Vale da Nogueira. Depois, já estacionada a carrinha, era um frenesim para entrar, não cabíamos todos, havia que esperar que os mais velhos fizessem as suas escolhas e nunca como naqueles instantes desejei tanto saltar no tempo e ser mais velho, só para ser dos primeiros a requisitar o Júlio Verne, os romances do Alexandre Dumas, os Cinco ou o Tarzan... E valia que, depois de me extasiar com aquelas prateleiras cheias de tantas coisas por descobrir, eu, que na altura não tinha livros em casa a não ser os de cowboys que ia comprando sempre que ia à vila com a minha mãe em dia de mercado, já com os três volumes debaixo do braço ia comparando com os outros, negociando empréstimos entre nós porque rapidamente iria ficar sem material de leitura, tal era a avidez com que ia para casa consumir aqueles maravilhosos mundos novos! A carrinha apenas voltaria daí a quinze dias, tempo demasiado para tanta vontade de ler... 
E a paixão pelos livros começou naqueles tempos e naquelas visitas, para ir sempre crescendo, de livro em livro... Por isso, obrigado Branquinho, obrigado Gulbenkian...




13 de Maio de 1958

Decorrem hoje precisamente 60 anos que Branquinho da Fonseca, então Administrador da FUNDAÇÃO GULBENKIAN, criou o Serviço de Bibliotecas Itinerantes, inspirado pelo sucesso de um projecto semelhante que o próprio tinha levado a cabo, durante os cinco anos anteriores em Cascais, enquanto aí era bibliotecário. O objectivo era levar o livro ás pessoas que não podiam ir até aos livros, "promover e desenvolver o gosto pela leitura e elevar o nível cultural das pessoas...", especialmente os jovens e os adultos iletrados das regiões periféricas e desfavorecidas. E se pensarmos que naqueles tempos obscuros tudo neste país atrasado era, à excepção de Lisboa, periferia, então era um projecto ambicioso, como acabou por ser e com grande sucesso... E três anos após o inicio do projecto, já circulavam pelo país 47 veículos carregados de livros, e milhões de exemplares seriam emprestados a milhares de novos leitores... Curioso era o facto de o encarregado dos empréstimos poder ser alguém que apenas preenchesse os mínimos requisitos de saber ler e escrever, possuir alguma bagagem cultural e ter jeito para lidar com o público! Isso não impediria, antes pelo contrário, que ao cargo se candidatassem jovens poetas com demasiada ociosidade, fruto da escassez de oportunidades de um país inculto, e hoje pergunto-me, com alguma nostalgia, se por acaso cheguei a receber alguns livros das mãos de Alexandre O'Neill ou Herberto Hélder, por exemplo...
O SBI (Serviço de Bibliotecas Itinerantes) da Fundação Gulbenkian terminaria em 2002, deixando um enorme legado a muitos milhares de portugueses e ao país.




13 de Maio de 2018

Hoje existem cerca 70 bibliotecas itinerantes a circular pelo país, sob a égide das Bibliotecas Públicas Municipais e cujo papel vai muito mais além do empréstimo de livros, oferecem outros serviços como seja a disponibilização de um terminal multibanco para efectuar pagamentos, aconselhamentos no preenchimento de IRS ou até acesso a prestação de cuidados de saúde a cargo de técnicos especializados... É o que se passa, por exemplo, pelas localidades mais remotas do concelho de Proença-a-Nova, onde o Bibliomóvel conduzido pelo bibliotecário Nuno Marçal combate o isolamento e o abandono de muitas pessoas, muitas delas idosas e analfabetas, mas que lhe retribuem experiências e saberes preciosos... Basta espreitar o seu blogue PAPALAGUI...




João Vírgula
(Leitor de Valmedo)

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