terça-feira, 5 de agosto de 2025

 
TIRADAS DO GÉNIO - VII

APENAS UM DIA DE MAU GÉNIO

Era apenas mais um daqueles dias em que o genial e temido Professor Vitorino Nemésio estava com os azeites e em que numa prova oral de Cultura Portuguesa teve em sortes de lhe calhar pela frente um aluno que tinha sido seminarista e conhecido como um marrão a sério:
- Que espectáculos viu o senhor ultimamente? - começou Nemésio...
O aluno, surpreso, respondeu:
- Ultimamente não vi nenhum...
- Nenhum? Vá-se embora!
E chumbou-o.

                                                                   (Baseado em "Anedotas do Nemésio", Arnaldo Saraiva, 2016)


João das Boas Regras
(Sociólogo de Valmedo)

domingo, 3 de agosto de 2025

"Flamengos abaixo...", Faial

 Jean-Charles Forgeronne
(Fotógrafo de Valmedo)

"O ilhéu e o cão", Museu das Lajes do Pico - Foto:Jean-Charles Forgeronne

 
SCRIMSHAW, UM PASSATEMPO ARTÍSTICO...

Scrimshaw é uma palavra da língua inglesa que designa a arte de entalhe, gravação e pintura em marfim, especialmente em dentes e ossos de mandíbula de cachalote... Esta arte começou por ser realizada a bordo das barcas baleeiras americanas que dominaram a caça à baleia a nível mundial entre 1820 e 1880, época em que o mundo era iluminado a óleo de baleia e as máquinas da Revolução Industrial exigiam quantidades astronómicas de lubrificante; ora, os homens que eram contratados, muitas vezes à força, passavam muito tempo em alto mar, chegavam a andar 4(!) anos embarcados, e sem nada para fazer os mais dotados iam dando asas às sua criatividade... 

"Museu das Lajes do Pico" - Jean-Charles Forgeronne

E os camponeses açorianos que eram contratados pelos americanos e que se revelaram, nas palavras de Herman Melville em "Moby Dick", os melhores caçadores de baleias, também se tornaram exímios artistas na arte do scrimshaw e originando depois uma indústria de artesanato com grande procura a partir do século XX e onde despontaram grandes artistas como por exemplo Frank Barcelos, terceirense da Praia da Vitória mas radicado na América desde cedo e que chegou a ser considerado o maior artista mundial desta arte no seu tempo... 

"Museu das Lajes do Pico" - Jean-Charles Forgeronne

A arte parece em declínio, já Barcelos avisava em entrevista ao Público em 1990, pouco tempo depois do fim da caça à baleia no arquipélago, que a actividade estava a morrer nos Açores, "um moço no Faial, um rapazito na Praia, um faroleiro de São Miguel que fazia coisas bonitas - não sei se morreu - e mais uns poucos"... E hoje, pondo de parte o mercado paralelo de cópias em massa sintética, o verdadeiro e genuíno scrimshaw parece confinado apenas aos museus ou a colecções particulares, valendo as obras originais dos antigos artistas verdadeiras fortunas... 

"Museu do Peter's" - Jean-Charles Forgeronne

João Plástico
(Artista de Valmedo)

sábado, 2 de agosto de 2025

 
CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - LXI

QUANDO NEPTUNO ESTEVE NA HORTA...

Entre o meio-dia e as quatro da tarde do dia 15 de Fevereiro de 1986 abateu-se sobre os Açores e especialmente sobre a Horta a maior tempestade do século XX, atingindo o vento 250 Kms/h, a altura das ondas era de 15 a 20 metros e a altura da rebentação chegou aos 60 metros... Quem nesse sábado andou pela baía de Porto Pim a fotografar o acontecimento foi José Henrique Azevedo, filho do Peter e actual gestor do estabelecimento, e quando dois anos mais tarde ao querer mostrar com mais facilidade aos iatistas a dimensão da tempestade e ao passar duas fotografias de diapositivo a papel algo de extraordinário se revelou...



Foi até um empregado do café que ao ver Azevedo de volta das imagens reparou que no momento em que foi tirada uma das fotografias se tinha formado na rebentação da onda uma figura humana, reconhecendo-se o cabelo, os olhos, o nariz, a boca e a barba, só poderia então e a propósito chamar-se-lhe Neptuno, o deus dos mares... O deus parece até estar descansando ou apenas observando, deitado e de cabeça recostada numa das vertentes do Monte da Guia, como se não fosse nada com ele... Foi um momento para a história...

Jean-Charles Forgeronne
(Fotógrafo de Valmedo)

"Arte na Horta" - Jean-Charles Forgeronne

 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

 
CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - LX

O ÚLTIMO CONCERTO DE JAQUES BREL

Nos registos oficiais consta que o último concerto de Jacques Brel ocorreu a 16 de Maio de 1967, no Coliseu de Roubaix, perante uma assistência de 250 espectadores, mas isso não corresponde à verdade pois no dia 12 de Setembro de 1974, o artista, fazendo escala na Horta durante a sua volta ao mundo a bordo do seu veleiro e já doente, ainda cantou para os vinte e oito clientes do Peter's naquela noite! O acontecimento ficou gravado na memória dos presentes e o seu testemunho perdura no tempo...

"Ouvindo Brel no Peter´s" - Jean-Charles Forgeronne

"Azevedo (...) dirigiu-se a um iatista francês versado em algum português, comunicou-lhe que estava ali um artista de dimensão universal e pediu-lhe para perguntar a Brel se podia interpretar uma canção, ali, para todos.
Ao ouvir o pedido, Brel ficou sério, quase melancólico.
Foi para fugir a estas solicitações que havia abandonado os palcos. Para não ter de voltar a trabalhar nas fábricas de cartão do espectáculo.
Todos os iatistas voltaram a olhar para o Grand Jacques e, fazendo o exercício de lhe retirar os adereços, reconheceram-no.
Percebendo a sua hesitação, ergueram as canecas para o incentivar. Brel olhou para eles e sentiu ali um ambiente desinteressado, de uma pureza boémia, uma fraternidade de lobos do mar.
Pediu uma viola."

in "Como um marinheiro partirei", Nuno Costa Santos


"Jacques Brel" - Museu de Scrimshaw, Peter´s - Jean-Charles Forgeronne

"Amsterdam" é a música que todos os dias se ouve quando o Peter's fecha portas por apenas algumas horas, e que melhor homenagem poderia ser feita ao artista-marinheiro? E aí eu arrepio-me um pouco e não é devido à brisa que se levanta do canal, tenho um calafrio porque a primeira vez que ouvi essa extraordinária canção e depois durante muito tempo foi numa versão do saudoso David Bowie, ainda adolescente eu era, e só muitos anos mais tarde descobri o arrepiante original...

                                                                                           Amsterdam - Jacques Brel
João Sem-Dó
(Musicólogo de Valmedo)
 
LIVROS 5 ESTRELAS - XLI

UMA VOLTA A MUITOS MUNDOS...

Foi um autêntico golpe de sorte o modo como descobri este extraordinário livro, talvez aquela sorte pela qual anseiam os marinheiros quanto enfrentam os perigos e desafiam a morte, foi um acaso tão singular que a partir desse momento comecei a ser um pouco menos céptico em relação à existência de um algoritmo superior e misterioso que condicione as nossas escolhas e o nosso percurso de vida, coisas que afinal talvez não dominemos assim tão bem como julgamos... Numa manhã quente de Outubro de 2024 e aos esses pelo esquisito trânsito da A8 íamos a caminho do aeroporto para apanhar o avião para a Terceira quando decido num impulso mudar de estação de rádio, passo da Antena 3 para a Antena 1, "por causa da informação de trânsito", justifico-me à N., e depois de sossegado por não haver acidentes nem transtornos de maior no acesso à grande urbe já o meu indicador se preparava para voltar a mudar quando ouço o pivot do programa dizer: "A seguir, na Zona VIP, João Gobern traz-nos uma história maravilhosa e um livro sobre os Açores, não é João?"...
- "Olha a coincidência! - lembro-me de ter exclamado - Nós em viagem para a Terceira e esta coisa sobre os Açores... 
O resto foi uma grande e maravilhosa descoberta que influenciaria e nortearia, passado quase um ano depois, a nossa exploração da Horta e do Faial em busca de sinais da passagem de Brel pelos Açores e tudo graças àquele mágico segundo em que mudei de posto, se não o tivesse feito o meu mundo e a minha vida não seriam os mesmos, seriam decididamente mais pobres pois quer o livro quer a fantástica vida de Brel me passariam ao largo ...

"O Askoy II" - Fonte: Google

Nuno Costa Santos chamou a esta obra "Como um marinheiro partirei", o primeiro verso da primeira canção do primeiro álbum de JACQUES BREL, de 1954, "Comme un marin je partirai", e como um romancista, um biógrafo e um repórter partiu ele, a partir de um antigo recorte de jornal, em busca da história da passagem da grande lenda da música do século passado pelos seus Açores... Brel, no auge da carreira e com apenas 38 anos, cansado de um ritmo de actuações extenuante, tinha-se surpreendentemente afastado do mundo do espectáculo e decidira dar uma volta ao mundo no seu veleiro Askoy II, com passagem pelos Açores... O resto é história e histórias para ler neste livro, de preferência ouvindo em fundo as magistrais canções do marinheiro...

"Captain Brel - Foto: www.boatsnews.com

João Vírgula
(Leitor de Valmedo"

quinta-feira, 31 de julho de 2025

 
FOI BONITA A FESTA, PETER'S!

Embora por vezes coloquemos isso em causa porque nada de extraordinário acontece nas nossas pacatas agendas de vida por longos períodos de tempo, é certo que existem felizes coincidências, temos noção disso por causa dos relatos alheios que nos chegam pelos mais variados meios mas agora fomos nós os contemplados com essa sorte, a nossa estadia no Faial coincidiu surpreendentemente com a festa do PETER'S que comemorou no passado dia 18 de Maio os 100 anos de nascimento de José Azevedo, o verdadeiro Peter...

"Out" - Jean-Charles Forgeronne

E que belo gesto foi aquele do Peter's em comungar com toda a comunidade o sucesso da casa, sabe bem ver a estima e consideração retribuídas e não faltaram naquela inesquecível tarde de domingo a música, a animação e a simpatia que é apanágio da casa, e além disso, claro, o caldinho de peixe, as bifanas no pão e as sardinhas, tudo oferta da casa, e que bem que souberam! Seria demasiado exigir também o maravilhoso bolo de chocolate ou o gin como oferta, quem sabe se não acontecerá lá para 2125, nos 200 anos de aniversário, porque longa vida se deseja ao Peter's... E obrigado!  

"In" - Jean-Charles Forgeronne

João Palmilha
(Viajante de Valmedo) 
 
TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XXXVIII

PETER'S, PORTO DE ABRIGO...

Tudo se encontra lá, os marinheiros em escala e os outros marinheiros que dali já não têm vontade de partir, os viajantes como eu que vieram pelos ares mas que agora, encantados, prometem a si próprios ser marinheiros numa próxima vida, os aventureiros dos sete cantos do mundo-cão em busca de novas emoções, os turistas que um dia juraram conhecer todas as ilhas açoreanas e que ali aportam a meio do seu périplo, os habitantes da Horta ou os vizinhos das Angústias ou os dos Flamengos, toda, mas toda a gente a qualquer hora se pode encontrar no PETER'S...  

"Destino incontornável" - Jean-Charles Forgeronne

Porque o PETER'S é muito mais do que um café ou um bar à beira da marina e em que na esplanada com a montanha do Pico no horizonte se petisca algo ou então se bebe o obrigatório e afamado gin, já agora um gin único, talvez nem pela qualidade da bebida, provavelmente não será o melhor gin do mundo, mas uma coisa é certa: em lado algum um gin sabe tão bem e parece tão milagroso como ali, talvez pelo cenário, talvez pelo ambiente, talvez sobretudo pela tradição e pelas histórias maravilhosas que envolvem o estabelecimento, talvez por tudo isso junto, o Peter´s é universal, inevitável destino de romaria e de encantamento...

"Na esplanada..." - Jean-Charles Forgeronne 

No Peter´s bebe-se, come-se, descansa-se, fala-se, ouve-se, olha-se, ri-se, pensa-se, analisa-se, sonha-se, diverte-se, assentam-se ideias, traçam-se rumos futuros, fazem-se amigos, juram-se coisas, limpa-se a cabeça, não é apenas um porto de abrigo para os marinheiros e os outros, é sobretudo um porto de abrigo para a alma... 


João Palmilha
(Viajante de Valmedo)

domingo, 20 de julho de 2025

 
POEMA VULCÂNICO SOTERRADO

Chegados à Ponta dos Capelinhos assalta-nos a sensação de que acabamos de pisar a Lua ou outro inóspito planeta qualquer, o cenário é negro, saído de uma infernal fogueira o chão não é mais do que cinzas e rochas queimadas, nenhuma criatura habita este território fustigado pela labareda do vulcão... Ainda assim, ao fundo, a antiga Casa dos Botes e um muro revestido a azulejos pintados pugnam por dar cor a tanta aridez e transmitir mensagens que preservam a memória da tragédia ao mesmo tempo que avisam as gerações futuras de que neste paraíso atlântico nada é garantido... 


"O Mural" - Jean-Charles Forgeronne

Naturalmente os ventos continuam a espalhar cinzas e pó do vulcão a muita distância, a paisagem altera-se, o muro enterra-se a cada ventania e parte do belo poema que ali foi escrito escondeu-se nas entranhas do planeta, nem pá nem picareta à mão e eu a escavar com as mãos mas debalde, acabo desolado por não conseguir trazer à luz a misteriosa parte oculta que se esconde terra adentro... Talvez noutro dia, em que os tempestuosos ventos levem estas cinzas para outro lugar seja possível lê-lo na íntegra, mas não tenho mais tempo aqui e pior do que isso é não saber de quem é o poema, estará ele publicado em alguma obra? Dúvida atroz...

"O poema vulcânico" - Jean-Charles Forgeronne


"No ar calafrio
rebenta em cachão repentino
luzidio penedo.

O cachalote

É átomo naquele mar infindo
o bote.

Nas cavernas da alma
rosna pronto o medo
enquanto o latejar do mundo
cospe adamastores de fogo
denso.
Assoma à boca do tempo
um esgar suspenso

Que terra é esta
de tais perigos
cheia?
Que gente é esta
(...)    "


J.C
(Poeta de Valmedo)

"Casa dos Botes", Capelinhos - Pedro Braia, Ana Correia, 2022

Jean-Charles Forgeronne
(Fotógrafo de Valmedo)

 
A RAIVA DO VULCÃO - XII

CAPELINHO, CAPELO, CAPELÃO...

    No dia 27 de Setembro de 1957 teve início no Faial um dos acontecimentos mais importantes da história da vulcanologia do planeta mundo-cão, perto do ilhéu dos Capelinhos, então situado a 1 Km da costa da península do Capelo, deu-se uma violenta erupção vulcânica submarina que a grande altitude projectou uma colossal quantidade de cinzas e vapor de água! O depois chamado Vulcão dos Capelinhos só terminou a sua actividade no dia 24 de Outubro de 1958 e durante esses intermináveis 13(!) meses foi, como nenhum outro até agora, observado, documentado e estudado... Felizmente ninguém morreu mas o impacto da erupção foi tal que aumentou a ilha em 2.4 Km2 e devido à destruição de casas, terrenos agrícolas e pastagens obrigou ao êxodo de metade da população da ilha para a América!  

"Capelinho" - Jean-Charles Forgeronne

O Capelinho do Capelo transformou-se então num Capelão e debaixo de toneladas de cinzas e areias vulcânicas ficaram então soterradas outras toneladas de memórias e vivências das gentes que desertaram, como aquelas do Porto Comprido por onde passavam os homens originários de várias ilhas e que depois de pernoitar na Casa dos Botes abalavam com coragem para a caça à baleia... O farol, esse, que também deve ter muitas histórias por contar, ali continua de pé, como devem estar os faróis mortos...


"O farol" - Jean-Charles Forgeronne

João Lava
(Vulcanólogo de Valmedo)

quarta-feira, 9 de julho de 2025

 
EFEMÉRIDE # 111

O DIA EM QUE A ILHA VEIO ABAIXO...

De vez em quando a Terra espreguiça-se e treme para nos mostrar como somos pequenos e vulneráveis, quais ácaros na pele de um monstro levamos com uma valente coçadela e o mundo muda num instante, são avisos para nos levar a pensar que controlamos muito menos do que aquilo que pensamos e para isso basta lembrarmo-nos do que aconteceu exactamente há 27 anos atrás nos Açores...

"Antes..."
De facto, no dia 9 de Julho de 1998, as ilhas do Faial, Pico e São Jorge tremeram e muito por causa de um violento sismo que abalou em particular a zona da Ribeirinha, no Faial... A Igreja de São Mateus, por exemplo, que já tinha sido completamente destruída noutro sismo em 1926 e que, apesar do insuficiente apoio estatal e graças sobretudo ao empenho e às contribuições da população durante oito anos, tinha sido teimosamente reconstruída e reerguida exactamente no mesmo local, acabou por ser novamente destruída! E assim continua nos dias de hoje, em escombros, à espera de uma nova vida, diz-se que talvez ressuscite noutro local da freguesia, noutro sítio talvez mais abençoado... Por enquanto ali resta o esqueleto do templo, afinal uma memória bem viva da tragédia, um aviso para a efemeridade das coisas...

"Agora..." - Jean-Charles Forgeronne

"Antes..."
Também o Farol da Ponta da Ribeirinha não resistiu ao sismo de 1998 e por lá continua em ruínas...  Tendo iniciado funções em 1919, com a sua torre quadrangular de 20 metros de altura e quatro moradias anexas para alojamento de faroleiros e respectivas famílias, o farol, imortalizado por Vitorino Nemésio na sua obra maior "Mau tempo no Canal", foi durante décadas um fiel guia das embarcações que durante a noite demandavam as águas que unem as ilhas do Triângulo, Faial, Pico e São Jorge...


Hoje em dia quem orienta os marinheiros nocturnos do triângulo é um farolim instalado numa coluna metálica branca com 5 metros de altura, vai servindo mas perdeu-se o romântico encanto... 

"Memória..." - Jean-Charles Forgeronne

João Alembradura
(Historiador de Valmedo) 

"Marina da Horta" - Jean-Charles Forgeronne

 


 NA HORTA, COMO UM MARINHEIRO...

Como um marinheiro cheguei à Horta, de barco, a bordo do Gilberto Mariano, um ferrie que pode transportar quase 300 passageiros e uma dúzia de viaturas e assim baptizado em homenagem àquele que durante décadas foi um herói das travessias diárias entre o Pico e o Faial para entrega de correspondência, encomendas e o que mais houvesse...
Mantenho-me sentado, serei, qual indómito capitão, dos últimos a sair, não tenho pressa nem maleita, a travessia apanhara mau tempo nos dois canais e agora, espreitando por entre muitos passageiros ainda cambaleantes e de saco de vómito na mão como se de um troféu se tratasse, quais zombies, vou vislumbrando ao longe o casario e a marina aos pés do Monte da Guia...   

"O Mariano ancorado" - Jean-Charles Forgeronne 

Devido à sua divina localização a meio do Atlântico, a marina da Horta é uma das mais famosas e procuradas do mundo, porto de abrigo de muitos iatistas e e aventureiros de todos os cantos do planeta que vão deixando nos muros e no chão os testemunhos da sua passagem, também por recordação futura mas especialmente por temerem a lenda que vaticina de que se não o fizerem não chegarão ao seu destino... E consta que não há marinheiro que não acredite no destino!


Depois de percorridas em passo lento e atento a marina e a marginal, apertando a fome nada melhor que abancar no Café Porto Pim e à custa de uma generosa tosta mista e de uma cerveja fresquinha no ponto deixarmo-nos enlevar pela vista da montanha e da formosa baía, isto se não formos distraídos por um bando de irrequietos e afoitos pássaros que com uma desconcertante familiaridade poisam na nossa mesa à cata de migalhas... 


E mesmo que nos tenhamos esquecido do livro que andamos a ler demasiado devagar devido às exigências da viagem, ou do bloco de notas onde registamos impressões para não as darmos como perdidas logo na manhã seguinte, há sempre mensagens que nos captam a atenção e nos fazem sonhar... 


João Palmilha
(Viajante de Valmedo)

sábado, 28 de junho de 2025

"Parque Florestal da Silveira", São Jorge - Jean-Charles Forgeronne

 

 
CURIOSIDADES DO MUNDO-CÃO - LVIX


ÁRVORES LAXANTES E PLANTAS CAGADAS

Manhã cedo íamos subindo a rua e já espreitavam ao fundo os três inseparáveis amigos do jardim de Velas: a palmeira, o candeeiro e a árvore... Mas era a árvore que nos chamava a atenção cada vez que ali passávamos, era ela a rainha do jardim pois apesar de aí existir outro exemplar da mesma espécie ele é bem mais pequeno, talvez seja ainda adolescente e um dia tome a imponência que esta árvore ostenta, um cilindro perfeito de ramagens e folhas verde-escuro, uma obra de arte de poda e embelezamento...
 - Lá está a nossa árvore-mistério, é uma pena que não tenha uma placa a identificá-la... - deixei o que ia dizendo a meio enquanto me ia interrogando mais uma vez qual seria o seu nome, é que alguém andava de volta dela, um jardineiro camarário a julgar pela farda...
 - Não vais... - ia dizendo a N. adivinhando a minha intenção mas eu já tinha acelerado o passo jardim adentro em direcção ao homem...

"A árvore-mistério", Velas - Jean-Charles Forgeronne

 - Bom dia, amigo, desculpe incomodar... - e ele levanta a cabeça demoradamente olhando para mim como se estivesse a ver uma ave rara - mas diga-me uma coisa, se souber, como se chama esta árvore aqui que me encanta?
 - METEROSIL... - disse ele tão rápido quanto lento foi o meu entendimento, mas fosse pelo enrolar da língua fosse pelo sotaque ou pela pouca sensibilidade do meu ouvido naquela manhã a coisa soou-me tão estranha que tive de insistir:
 - Desculpe, METERO... QUÊ?
 - METEROSIL! - novamente de chofre voltei a entender...
 - Ah! Obrigado...
E dali saí pouco convencido a soletrar M.E.T.E.R.O.S.I.L para não me esquecer de anotar no caderno de viagem para posterior investigação....   

"Jardim de Velas" - Jean-Charles Forgeronne

E já sentados na "Suspiro" diante de um sumo de laranja e de uma sandes de queijo da ilha a fazer pesquisa internética pergunta a N.:
 - Então, que árvore é aquela?
 - Pois, continua o mistério, não percebi lá muito bem o que jardineiro disse, ou ele estava a gozar comigo ou então inventou porque aquilo que percebi da boca dele -METEROSIL- não encontro em lado nenhum, nem em sites de botânica, a coisa mais aproximada que me aparece é um medicamento laxante para emagrecer... 
 - Bom, quem sabe, talvez um chá feito com as folhas desta árvore te faça perder essa barriga... 
Ali não achei piada nenhuma mas passados alguns dias, já a nossa migração ia no Faial e com o assunto quase esquecido, a história da árvore misteriosa voltou à baila e então sim tornou-se engraçada...  

"Dragoeiros", Faial - Jean-Charles Forgeronne

Era domingo à tarde, tínhamos descido dos Flamengos e ainda havia tempo disponível antes de rumar  à festa do Peter´s e assim, em boa hora, aproveitamos para explorar o Jardim Botânico do Faial... E de entre as muitas curiosidades que conheci uma me deliciou particularmente: o facto de que cerca de 58% das espécies vegetais dos Açores terem chegado às ilhas através das aves migratórias, grande parte delas vindas de África e que transportam as sementes nas suas fezes... Portanto, é só imaginar, a ave vôa milhares de quilómetros com as sementes no seu intestino e depois, ao pousar nas paradisíacas ilhas da Atlântida alivia-se e assim enriquece a natureza, dando-lhe, por exemplo, vários exemplares de dragoeiro... Ou seja, uma planta cagada...  

"Jardim Botânico", Faial - Jean-Charles Forgeronne

E depois, no final da visita e passando outra vez pela recepção pergunta-nos o simpático anfitrião por detrás do computador:
 - Então, gostaram?
E nós dissemos que sim, claro, e eu dizendo que tinha achado piada a muitas curiosidades e ele, com ar de entendido na matéria (talvez fosse biólogo), ia juntando ainda alguns pormenores interessantes e foi então que me deu a veneta, lembrei-me da árvore misteriosa do jardim de Velas e mostrei-lhe a melhor foto que tinha da árvore:
 - Sabe dizer-me que árvore é esta? - perguntei esperançado...
Ele pegou no telemóvel, olhou e voltou a olhar, e balbuciando qualquer coisa voltou-se e perguntou a um colega que ia a passar, os dois entreolharam-se, talvez fosse isto, talvez fosse aqueloutro, e só quando eu contei a história do jardineiro e do METEROSIL é que eles acordaram...
-Ah! METROSÍDERO! É isso! - disseram ao mesmo tempo e já um deles fazia uma pesquisa e voltava o ecrã do computador para nós com uma foto lindíssima de uma irmã gémea da nossa árvore-mistério...


"Trovisco-explosivo", - Jean-Charles Forgeronne

 - METROSÍDERO! - exclamei! - Que raio de nome para uma árvore!
Afinal, o jardineiro tinha feito o melhor que pudera, entre o METROSÍDERO que ele tentou dizer e o METEROSIL que eu percebera ia pouca diferença, os dois nomes são horríveis e de facto só apetece laxar no assunto e nestes nomes esquisitóides... Mas pronto, honra seja feita ao METROSÍDERO, parece que é a árvore nacional da Nova Zelândia, a árvore que para eles simboliza o Natal...
Ouvem-se então umas explosões e então fico na dúvida: serão já os foguetes a chamar para a festa do Peter´s ou serão apenas sementes do trovisco-macho a explodir? Sim, o trovisco-macho (Euphorbia) tem nos Açores uma subespécie muito curiosa: no final da frutificação, caso as condições ambientais sejam favoráveis, as suas cápsulas explodem para dispersarem as sementes o mais longe possível da planta-mãe...
É caso para dizer que nessas alturas é melhor não estar muito por perto e pelo sim pelo não fomos andando para o Peter´s....

João Atemboró
(Naturalista de Valmedo)   

quarta-feira, 25 de junho de 2025

 
TASCAS E ANTROS DE PRAZER - XXXVII

AS DUAS SARAS DE SÃO JORGE

Em São Jorge duas Saras esperam por nós, uma em cada ponta da ilha, de sorriso e conversa fácil cativam os visitantes e se a curiosidade for bastante desvendam com orgulho segredos e curiosidades da sua gente e da sua terra, coisas maravilhosas que não se encontram nos guias de viagens nem nas pesquisas internéticas, talvez não se conheçam sequer embora seja muito provável que sim pois isto de viver numa ilha com pouco mais de 8000 habitantes leva a que, mais cedo ou mais tarde, se conheçam todos e neste caso em particular ainda mais porque trabalham no mesmo ramo, afinal basta que a Sara de Velas vá almoçar ao Topo e que a Sara do Topo vá tomar um café a Velas... 


Nada melhor do que começar o dia em Velas a subir a Rua Manuel Arriaga, sem dúvida a rua mais bela de toda a ilha, admirando sem pressa a sua lindíssima calçada, passar ao lado do jardim e do edifício da Câmara Municipal e logo aí abancar na Pastelaria SUSPIRO para um pequeno almoço servido com carinho num ambiente acolhedor...

"Pastelaria Suspiro" - Velas

Não esquecendo que a produção de laranja é desde a primeira metade do século XIX um dos pilares da actividade económica de São Jorge torna-se então obrigatório acompanhar a irresistível e majestosa sandes de queijo da ilha com um sumo de laranja tão natural quanto delicioso, apesar dos sedutores bolos em exposição e do bom ar dos galões directos que vão chegando às mesas, tirados com mestria pela Sara e com espuma quanto baste, como convém... 

"O Caseiro", Topo

Despedidas feitas à Sara e com a promessa de regresso na manhã seguinte ala que se faz tarde que era hora de visitar as Fajãs da costa norte e depois ir almoçar ao Topo, no extremo sul da ilha... E é no topo do pequeno largo onde impera o Império do Divino Espírito Santo do Topo que que nos aguarda a outra Sara, no CASEIRO, casa típica e humilde mas que honra as tradições gastronómicas dos Açores, prepare-se amigo leitor para um buffet onde apesar das poucas opções tudo pode acontecer, hoje pode haver cabrito ou panados de polvo, amanhã poderá ser albacora ou feijoada, tudo depende das marés e das circunstâncias, nós tivemos a sorte de ser presenteados com carne de novilho guisada a desfazer-se e ainda com uma deliciosa massada do mar, e tudo, mas tudo caseiro! Vale a pena arriscar... E depois, pormenores importantes, o pão, o queijo da ilha e o vinho, quer branco quer tinto, são óptimos!   



Claro que não há preço que pague a simpatia nem as histórias desta outra Sara e a verdade é que no final a conta sai muito simpática ainda para mais quando já inclui a sobremesa que tanto pode calhar ser uma tradicional espécie ou então uma mousse de manteiga de amendoim, tão equilibrada que não dá para enjoar....

"Espécie e mousse"

João Ratão
(Chef de Valmedo)

segunda-feira, 23 de junho de 2025



 

"Fajã dos Cubres" - Jean-Charles Forgeronne

 
CUBRES, AMÊIJOAS E CAFÉ

Depois de longo tempo abafados por um denso nevoeiro que obrigava a redobrados esforços na condução e que não permitia sequer vislumbrar a Graciosa mesmo ali ao lado, abandonámos a estrada regional que bordeja a costa norte da ilha e iniciámos a abrupta e perigosa descida para a Fajã dos Cubres...
 - Será que vale mesmo a pena? Descer lá abaixo e depois não ver nada? - questionava a N., temerosa, mas a temerária decisão estava tomada:
 - Olha vês? O carro virou sozinho, ele é que tomou a decisão, já deve estar habituado a isto! - mas a suposta piada nem um tímido sorriso arrancou - Vamos e pronto, a pior coisa que pode acontecer é voltar para trás sem ter visto nada de jeito, há que arriscar... - mas a parte final da frase já me saiu com menor entusiasmo... 


"Cubres & lagoa" - Jean-Charles Forgeronne

E à medida que íamos descendo crescia o horizonte e a luminosidade, afinal sempre iriamos ver alguma coisa! E o que víamos? Verde e mais verde a ladear a sinuosa estrada e uma luxuriante vegetação a escorrer pelas falésias a pique, e lá em baixo, abraçando as lagoas e espalhado por toda a pequena planície, o verde vivo e rasteiro dos cubres, uma espécie de nome científico Solidago sempervirens, esquisito como todos os nomes científicos, e é uma planta cujo caule pode atingir os 60 centímetros de altura e donde irradiam numerosas folhas apiculares...

"Cubres & Santo Cristo" - Jean-Charles Forgeronne

Mas para além do facto de ser uma planta presente em todas as ilhas dos Açores, uma das principais características dos cubres são as inúmeras e pequenas flores que brotam dos seus caules e pintam todo o cenário de amarelo, mas ainda é cedo, nesta excursão por São Jorge ainda estava tudo demasiado verde... E ali, com a tão próxima mas para nós inacessível Caldeira do Santo Cristo a espreitar, o único local nos Açores onde se criam amêijoas, mas para atenuar a desilusão não é que é mesmo aqui, em plena Fajã dos Cubres, o local ideal para degustar essas amêijoas? Ali em cima, diante da igreja, lá está o café-restaurante que as serve, infelizmente ainda é cedo e o almoço já está reservado para o Topo, onde ainda reina o nevoeiro... Fica para a próxima...

"Café açoriano" - Jean-Charles Forgeronne

Mas ainda antes do almoço e até porque a manhã só ia a meio demandamos a Fajã dos Vimes, famosa pelo seu café! De facto, é ali o único local onde se cultiva café em todos os Açores! E lá chegados é só ir até ao Café Nunes e degustar o dito, para além de ser possível também visitar as plantações... Reza a lenda que no século XIX um emigrante açoriano trouxe do Brasil umas sementes de café arábica e que graças ao especial microclima da Fajã dos Vimes prosperou até aos dias de hoje... E que o café é delicioso lá isso é, é especial mesmo, afianço... 



João Palmilha
(Viajante de Valmedo)