O CÃO NEGRO DA ILHA
- Merda! Esqueci-me disto! - digo involuntariamente em voz alta, no final de um dia exigente e quando, finalmente de pernas estendidas na confortável cama da Sara Village, faço uma apreciação da jornada... Estou com o caderno de viagens na mão e leio e volto a reler aquele apontamento que nele tinha feito muitas semanas atrás, e quantos de vós, verdadeiros viajantes, se identificam com isto, com aquilo que fazemos a priori, com aquelas notas que rabiscamos aquando da idealização e programação de uma viagem futura:
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"O colar do Pico" - Jean-Charles Forgeronne |
"Quando chegar ao aeroporto do Pico, - leio enquanto vou decifrando a minha letra - a primeira coisa a fazer é procurar a visão da montanha, depois descobrir o sorriso de pedra e depois, antes de Rumar às Lajes para o voto antecipado, passar obrigatoriamente pelo "cachorro"! E, de facto, não me esqueci de olhar para a montanha porque é impossível esquecer de a procurar com o olhar porque ela é omnipresente, tão voraz e magnética que a cada segundo nos atrai - "Onde está ele, o Pico?" - e embora escondida atrás de teimosas nuvens ambulantes ou de um nevoeiro assaz parvo ("Sim, para que serve esta porcaria do nevoeiro?" - irei questionar-me doravante milhares de vezes neste périplo pelas ilhas afortunadas) a montanha está sempre lá, sentimos a sua presença ainda que a não possamos ver, como foi o caso neste e nos seguintes breves dias...
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"O Cão Negro" - Jean-Charles Forgeronne |
E a seguir, ainda no frenesim da chegada, já com as chaves do Fiat 500 na mão e saudação feita ao Pico que se mostrava sobre um colar de nuvens interminável que vinha dos lados da Madalena e que viajava para leste, ala que se faz tarde para o Cachorro! E lá estava ele como o tinha imaginado, o cão negro de lava, camuflado e de orelhas eriçadas, vigilante... Ali, na costa norte do Pico, o mar penetra em turbilhão por túneis e arcos, numa dança de espuma branca a explodir nas rochas calcinadas pelo vulcão...
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"Arco do Cachorro" - Jean-Charles Forgeronne |
Faça chuva faça sol, tenha a noite sido difícil ou o acordar intranquilo, no Pico é sempre possível alegrar o dia por mais exigente que ele se mostre, basta contemplar um sorriso de pedra e é difícil não encararmos com um deles, desde que Helena Amaral os começou a esculpir estão já cerca de 200 sorrisos espalhados pela ilha! Como diz a artista:
"É no rosto, no olhar, no sorriso de cada um de nós que as emoções explodem, desenham e gravam as rugas das alegrias e tristezas da vida. Sorrir é comunicar sentimentos íntimos e privados, é partilhar silêncios e olhares que só o rosto pode divulgar. Sorrisos de Pedra pretende oferecer o enorme potencial que é o sorriso nos rostos das crianças, dos adultos e dos mais velhos..."
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"Sorriso" - Jean-Charles Forgeronne |
E se é certo que falhei o primeiro sorriso de pedra depois iria desforrar-me, muitos e muitos encontrei para me alegrar...
João Palmilha
(Viajante de Valmedo)