quarta-feira, 23 de setembro de 2020

 

TER ASAS E NÃO VOAR...


Primeiro veio o susto logo pela manhãzinha, assim que saí porta fora senti que o mundo estava diferente, o chão movia-se debaixo dos pés! Veio-me imediatamente à cabeça aquela ideia não tão disparatada assim, foi desta, pensei, durante a noite tinham chegado os extra-terrestres e tinham alterado as leis físicas e magnéticas do planeta, estávamos agora numa dimensão diferente! Olhei para o céu escuro a ameaçar aguaceiro e pareceu-me normal, pus-me à escuta e nada se ouvia, nem os cães dos vizinhos, apenas o JAMES me espreitava de cabeça pendurada na grade do muro e com ar triste por não me fazer companhia na corrida, estranhamente não passava carro nenhum na estrada além, sempre movimentada, olhei as casas em volta e tudo parecia tranquilo e igual mas o mundo parecia estar suspenso, disparatadamente consultei o relógio do telemóvel e com alívio constatei que o tempo continuava a rolar, eram oito da manhã como seria de esperar, e então voltei a olhar para o chão: raios, ele continuava a mexer-se!


E só me baixando, quase de joelhos, esclareci o mistério: eram às centenas, aos milhares, pelas pedras da calçada, pela terra em redor, até pelo alcatrão, milhões de pontos negros se moviam sem nexo, pareciam desorientadas aquelas FORMIGAS...  E depois reparei noutra coisa curiosa, muitas delas tinham ASAS, que raio, para que quer asas a formiga se depois passa a vida a calcorrear a terra, afinal alguém já viu formigas a voar? Ali estão rolas penduradas nos fios telefónicos, além passa um melro num esvoaçar desengonçado, mais tarde chegará o pardal que me tem debicando com entusiasmo o metro quadrado de relva que tenho ao lado da garagem, gaivotas primas do Fernão Capelo desafiam as leis da gravidade ali em baixo na praia do Caniçal, até aqui tudo bem, tudo lógico, mas formigas a voar? Nunca vi e volto a pensar que o fim deste mundo-cão estará próximo e não é preciso que cheguem os alienígenas...


E depois, após ter atravessado a rua escolhendo bem o sítio onde pisar que até parecia estar a jogar à macaca, chegado à floresta rejuvenescedora não consegui andar direito tanta era formiga a sair das entranhas deste surpreendente planeta e não querendo incomodar a estonteante azáfama destas criaturas rainhas do subsolo e do mundo inteiro lá segui mais a caminhar do que a correr, convencido já que a Terra é oca e que os verdadeiros aliens invasores e a verdadeira ameaça somos nós, humanos...


Então parece que o fenómeno se explica do seguinte modo: em qualquer espécie de formiga todas as rainhas e todos os machos têm asas! Para quê? Ora bem, isso acontece em nome da perpetuação da espécie, ou seja, acasalamento e dispersão em massa e isso ocorre após as grandes chuvadas do final do Verão e princípio do Outono, alturas em que nas alturas e no chamado voo nupcial estes insectos alados praticam sexo desenfreado... E enquanto as rainhas apenas possuem asas enquanto jovens até ao acasalamento porque depois vão fundar algures o seu próprio formigueiro, onde passarão anos e anos a colocar maquinalmente ovos e mais ovos, não precisando de asas para nada, já os machos serão alados a vida inteira mas isso não é caso para serem invejados, é que eles só viverão duas ou três semanas e ainda que as passem inteirinhas a fornicar parece-me uma existência  demasiado efémera... Ou talvez não, diria o Einstein, que isto do tempo é muito relativo!

João Atemboró
(Naturalista de Valmedo)

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