O HOMEM BESTIAL, OS ANIMAIS E AS BESTAS - I

O caso e a noticia tornaram-se ambos virais nos últimos dias: adolescentes violaram uma burra e apanharam RAIVA! Nem um, nem dois mas quinze (15!) jovens com idades entre os 7 e os 15 anos foram obrigados a ir ao hospital, todos com os mesmos sintomas da raiva e, depois de interrogados, confessaram não terem sido afinal mordidos por nenhum animal (não apresentavam nenhuma ferida) mas que tinham feito sexo com uma besta, uma burra que infelizmente estava infectada e que teve que ser imediatamente abatida, de pouco lhe valendo o eventual prazer (?) e a atenção que mereceu por parte de tanta gente...

Tudo aconteceu em Marrocos, numa zona rural perto de Alcácer-Quibir, a grande fortaleza que foi palco da Batalha dos Três Reis e na qual desapareceu, para sempre e por entre o nevoeiro, o nosso El Rei D. Sebastião... Mas a notícia que foi propalada por todo o mundo fica-se por aqui, apresenta o insólito caso mas não questiona o futuro e as implicações para os envolvidos e para a comunidade local, dá ênfase à bestialidade mas não se debruça sobre a saúde pública... O que irá acontecer àqueles jovens, para além do opróbrio? 

O cenário que os espera não é famoso já que a RAIVA é fatal em praticamente 100% das ocorrências em que há sintomas, como parece ser o caso desta trágica aventura sexual, aliás, nenhuma outra doença infecciosa apresenta uma taxa de mortalidade tão elevada, causando a morte a cerca de 70 000 pessoas por ano em todo o mundo... É uma doença conhecida e temida desde a Antiguidade e em que se acreditava na altura ser de origem sobrenatural pois os cães e os lobos pareciam possuídos por espíritos malignos! Na época, o tratamento mais utilizado e eficaz era a cauterização das feridas e das mordeduras com ferros em brasa....    

Caricatura do séc. XIX - O medo de um cão raivoso

Os gregos chamavam-lhe Lyssa (loucura, demência) e até a palavra vírus (veneno em latim) deriva da raiva, uma vez que se pensava que existia um veneno na saliva dos animais. A RAIVA (do latim rabere - loucura, demência) é uma zoonose ( transmitida por animais mamíferos) provocada geralmente através da mordedura ou arranhadela e inoculação do vírus Lyssavirus, presente na saliva dos animais infectados. Este vírus, depois de invadir rapidamente os nervos periféricos sobre a pele, move-se até ao cérebro, causando uma encefalite mortal... É aí, no cérebro, que o vírus se multiplica exponencialmente e, antes da morte do animal infectado, se este atacar outro mamífero, como o ser humano, por exemplo, a carga viral será enorme e fatal...

Actualmente, na maioria dos casos, a transmissão da infecção ocorre através de cães ou morcegos, porém, em casos mais raros, também pode ser provocada raposas, gatos, macacos e até por mamíferos não carnívoros como o porco, vaca, cabra, cavalo.... ou burro!

 LOUIS PASTEUR - Pintura de Robert Thom

Mas nem tudo é trágico na questão da raiva, graças ao génio de LOUIS PASTEUR, esse mesmo que acabou com o mito da geração espontânea e que fez notáveis descobertas no que respeita à origem das doenças e seu tratamento, nomeadamente o processo que hoje tem justamente o seu nome - PASTEURIZAÇÃO - e que muitas vidas terá salvado desde altura ao evitar o consumo de alimentos contaminados! Pasteur empenhou-se a fundo em descobrir uma vacina para a raiva talvez porque, enquanto menino de 9 anos, assistiu de perto na sua terra natal à tragédia que foi o ataque de um lobo raivoso a homens e animais, tendo assistido inclusivamente, na oficina de um ferreiro vizinho da sua casa paterna, à cauterização de um menino que tinha sido ferido. Esse rapaz acabaria por se salvar mas a mesma sorte não tiveram outras oito pessoas.

Assim, quando muitos anos mais tarde e já um investigador de sucesso na descoberta dos segredos dos micróbios, quando lhe entra pelo seu gabinete adentro uma mãe arrastando o seu filho pequeno que tinha sido mordido poucos dias antes por um cão raivoso, o cientista que já tinha ensaiado uma vacina em coelhos e cães com sucesso, não hesitou em testá-la naquele menino e acabou por salvá-lo: estava descoberta a vacina da raiva! Hoje em dia, graças às campanhas de vacinação de cães domésticos e gatos, a exposição ao vírus da raiva por parte do ser humano é diminuto, e exceptuando o caso dos cães vadios, a principal ameaça vem de animais selvagens como a raposa e especialmente o MORCEGO...  

João Alquimista
(Investigador de Valmedo)