sábado, 9 de abril de 2016




A VINGANÇA DO CAVALEIRO SEM CABEÇA


         No dia em que as prímulas anunciaram a primavera Roger Martins deambulava por Montmartre e ali, na colina mais elevada da mais bela cidade sentiu-se tomado por uma inebriante sensação de liberdade, uma estranha e doce leveza  invadira-o de tal forma que parecia planar pela cúpulas monumentais da cidade crepuscular que se estendia a seus pés. Agora compreendia a sedução daquele lugar, o "je ne sais quoi" que desde tempos remotos atraía pintores, escultores, poetas e outros espíritos livres e boémios que aí peregrinavam em busca do mais alto desígnio: a unicidade, o equilíbrio, a perfeição...
            Roger estivera tão absorto a contemplar a queda da noite sobre o coração da cidade que não reparara que, de um modo súbito e estranho, toda a vivalma se eclipsara daquele lugar, as únicas criaturas que conseguia vislumbrar eram os corvos que cruzavam o ar vindos do lado do cemitério em busca de uma presa ausente. Aves de mau agoiro, desde menino ouvira dizer e aquelas faziam bem jus a essa sentença porque o seu crocitar agreste  e o brilho efémero que emanavam das asas negras quando rasavam os candeeiros ainda foscos assustariam a mente mais tranquila deste e de outros mundos...
     Subia agora a Rue du Chevalier du Barre, contornando o Sacré Coeur, mas em vez de ouvir a rotineira azáfama da Place du Tertre lá em cima tudo o que lhe chegava era um silêncio atroz, um suplício feito de ausência e abandono.... Haveria mesmo sentido para tudo isto? - questionava-se.... e então ouviu atrás de si o barulho dos cascos de um cavalo a aproximar-se rapidamente....
              
Rue du Chevalier de la Barre
     Assustado, Roger encostou-se à parede do santuário, susteve a respiração e foi assim que, imóvel e colado à pedra fria que lhe gelava ainda mais o corpo, viu passar à sua frente cavalo e cavaleiro de espada em punho a grande galope e se por um momento ainda pensou que estava a ser vitima de uma ilusão de óptica o que aconteceu depois deixou-o estarrecido. Roger continuou imóvel e paralisado até porque o cavaleiro tinha parado um pouco à frente e recuava agora a passo muito lento até ficar mesmo à sua frente e então viu o que pensara ter imaginado antes: o cavaleiro não tinha cabeça! O cavalo pressentiu algo e virou a cabeça na sua direcção mas o cavaleiro, ou por não ter cabeça nem olhos ou por parecer mais interessado em algo que se aproximava ao fundo da rua, não deu pela sua presença e após alguns segundos que pareceram séculos, embainhou a espada ensanguentada e virou novamente de direcção retomando o galope.

         Roger aguardou um pouco e não ouvindo mais o barulho do cavalo atreveu-se a sair do esconderijo, as pernas tremiam-lhe ainda e ajustando o olhar à escuridão da noite que entretanto caíra de vez olhou para a sua direita  tentando vislumbrar o que tinha chamado a atenção daquela aparição fantasmagórica. Ao princípio não viu nada de estranho mas, alertado por um gemido, descendo um pouco mais apercebeu-se de um vulto deitado de bruços no meio da rua.
           - Au secours! Aidez-moi! - conseguiu ouvir. 
          Roger debruçou-se e virando lentamente para si o corpo  do
agonizante apercebeu-se de que era um padre que ali jazia. Os olhos azuis quase transparentes da vitima contrastavam com a mancha de sangue que se alastrava no seu peito e apontando para algo que estava ali ao lado balbuciava:
           - Tem que fazer a oração.... Não há tempo, tem que ler a...
          - Calma, vamos ali para a luz - disse Roger arrastando com dificuldade o outro para debaixo de um candeeiro. Tirou da mochila que trazia às costas uma garrafa com água e deu de beber ao moribundo que continuava a apontar para aquilo que parecia um livro.
           - Não temos muito tempo. O Chevalier pode regressar a qualquer momento.
           - Mas quem é o Chevalier e porque é que não tem cabeça? - tornou Roger, dando mais um gole de água ao moribundo.
           - Ele foi decapitado e queimado na praça por não ter saudado uma procissão... e agora o seu espírito voltou para se vingar...Eu estou acabado - continuava o padre mas cada vez com maior dificuldade - o senhor tem que ir ao santuário e ler a oração para salvar as almas...
           Roger ia perguntar a que almas se referia o padre mas não foi necessário porque ao fundo assomava uma estranha peregrinação, vultos e mais vultos de roupas andrajosas e esfarrapadas, de lanterna na mão e apenas o arrastar dos seus pés nus e ensanguentados se ouvia daquela mole imensa...
              - São as almas dos 20000 apoiantes da Comuna que foram chacinados pelas tropas do Governo.... - conseguiu ainda o padre balbuciar entre gemidos. - Para que sejam salvas não pode ser interrompida a oração perpétua em sua memória... O senhor... tem... que ir ...
                 O padre havia expirado e Roger, de novo só porque aquele cortejo sobrenatural entretanto desaparecera, hesitou entre fugir dali a quantos pés conseguisse ou levar até ao fim a missão do clérigo. Levantou-se e apanhou o livro, tratava-se do "Dicionário Filosófico" de Voltaire e no meio das suas páginas sobressaía uma folha de papel já amarelecido pelo tempo na qual constava uma oração em latim. E Roger pensou para si que ainda bem que nos seus tempos de adolescente passados em Vila Marim, lugar perdido nas encostas agrestes e isoladas do Douro, frequentara um colégio jesuíta onde aprendera alguma coisa do latim.
                 Pegou no livro e na oração e, pé ante pé, colado ao mármore da Basílica, prescutando com olhos e ouvidos conseguiu chegar a um ponto de onde se avistava, a um nível superior, uma porta entraberta do santuário. Deve ser a entrada dos padres, pensou, mas enquanto subia a escadaria ouviu nas suas costas um resfolegar, virou-se lentamente e a poucos metros lá estavam eles, o cavaleiro sem cabeça e o cavalo de olhos demoníacos...

João Palmilha - Viajante de Valmedo

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